Com a proximidade da realização da Copa das Confederações, em 2013, e a
Copa do Mundo, em 2014, haverá alguém que, fatalmente, receberá a seguinte
pergunta de algum turista estrangeiro que virá para nossas terras: qual livro
você indica para conhecer o futebol brasileiro?
Se quer uma dica do Literatura na Arquibancada, indique o livro “Viagem
ao país do futebol” (Editora DBA, 1998). Escrito pelo craque do jornalismo
Mário Magalhães, repórter de primeríssima linha, o livro é, literalmente, uma
viagem sem fim aos meandros do futebol brasileiro.
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Mário Magalhães |
São 15 histórias escritas por Mário e documentadas em foto por outro
craque, Antonio Gaudério. Foi uma verdadeira aventura, como o próprio Mário
relata na abertura do livro: “As histórias narradas foram colhidas de 1993 a
1997, em dezessete cidades de nove estados brasileiros.
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Antonio Gaudério |
Para contá-las, em idas e vindas, foram percorridos 33 mil quilômetros,
7 mil a menos do que a volta ao mundo pela linha do Equador – 27 mil de avião,
sobrevoando Norte, Nordeste, Sul e Sudeste, 5500 de carro, encarando terra
batida para beirar o Uruguai e a Venezuela, e setecentos de barco, navegando
pelo Solimões até alcançar um torneio de futebol na floresta amazônica”.
Todas as histórias foram publicadas originalmente no jornal Folha de
S.Paulo. Há de tudo um pouco: futebol entre os índios, no Amazonas;
garimpeiros boleiros em Roraima; o time das “calcinhas”, em Santa Cruz do
Capibaribe, no sertão do Pernambuco; os coronéis do futebol nordestino; e
outras histórias sensacionais.
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mascote do Serrano Futebol Clube, de Serra Talhada. |
Uma delas, escolhida pelo Literatura na Arquibancada, desperta, já no
título “Duelo na terra do cangaço”, a curiosidade pelo o que Mário Magalhães
descobriu na terra de Lampião. Não é a toa que, por lá, até hoje, exista a
torcida “Lampiões da Fiel”.
Vale lembrar que as fotos utilizadas neste artigo não fazem parte do livro.
Duelo na terra do cangaço
Serra Talhada, fevereiro de 1997.
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Estádio Pereirão, em Serra Talhada. |
O Serrano, time de Serra Talhada, estava em apuros. Jogando em casa, no
estádio Pereirão, seus jogadores se envolveram num qüiproquó com os adversários
de Surubim, também do sertão pernambucano. Os oponentes, embora não tivessem
sofrido um arranhão, prometeram recepção violenta. Fosse de outro lugar, o
Serrano teria pedido proteção policial e ajuda da federação. Mas o clube comportou-se
de forma ortodoxa: cada jogador viajou carregando um revólver, na maioria
calibre 38. No total, mais de vinte armas. História espalhada, a equipe passou
incólume por jogadores, torcedores e bandos de assaltantes que atacam ônibus.
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Virgulino Ferreira da Silva,. o Lampião. |
A coragem, fora de campo, e a garra, dentro dele, são componentes da
herança cultural do maior fenômeno social da história da cidade, o cangaço, e
do seu grande protagonista: Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião.
O zagueiro Carlos Alberto Bezerra, o Boi, é o paradigma da valentia dos
atletas do Serrano, equipe da segunda divisão do Campeonato Pernambucano. Primo
de Lampião – seu avô, Massá Ferreira, era primo-irmão do Rei do Cangaço –, com
pouco mais de 1,60 metro de altura, Boi é um gigante a impor respeito na área,
pelo estilo elegante, de passes corretos, que lembram o líbero italiano Franco
Baresi.
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Boi, parente de Lampião. Crédito: arquivo revista Placar, set/1996 foto: Alexandre Battibugli |
Num arranca-rabo de família, como o que originou o bando de Lampião, já
foi seqüestrado. “Não sei nem atirar”, diz ele, às gargalhadas, antes de
afirmar: “Esse negócio de briga eu já trago de berço”. Boi ganhou o apelido nos
tempos em que trabalhava como vaqueiro. Também já foi agiota. “Mas agora
larguei”.
Erra quem folcloriza o futebol local como violento – nos gramados, seus
atletas não batem mais do que a média. Mas, fora, vivem a barra-pesada de Serra
Talhada. O meio defensivo Tinha, que treinava como titular, fugiu da cidade há
semanas. Um policial disse que o jogador foi embora depois de levar uma coça da
polícia. Na dúvida, Tinha achou melhor desfalcar o time e esperar que o clima
fique mais ameno.
As histórias no Serrano vão do drama à comédia. O lateral-esquerdo
Bebeto teve um irmão de dezesseis anos assassinado. Dois meses depois, o pai
teve o mesmo destino.
A vida do ponta Genival por pouco não acabou tragicamente como a da
família de Bebeto. Desesperado com o rompimento de uma namorada, o jogador
tomou veneno e foi internado em estado grave. Como escapou, é chamado hoje de
Baygon, marca de inseticida.
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Equipe do Serrano, de Serra Talhada, em 1996. Crédito: arquivo revista Placar, set/1996 Foto: Alexandre Battibugli |
Casos assim ficam fora dos estádios. Nestes, o cotidiano dos atletas do
Serrano é igual ao de outros que sonham em chegar a um grande clube e acumular
fortuna. “Só que, aqui, ninguém ganha no grito, porque o time só tem
cabra-macho”, alerta Boi. “Quando um briga, a briga é com todos, porque somos
unidos”, amedronta o meia Wagner.
Faz parte da cultura daqui recusar a covardia. Se precisar, há sempre
por perto o zagueiro Zé, policial militar que treina nas horas vagas, e o
diretor Willians (escrito assim mesmo) Lacerda, policial civil.
Como muitos jovens de Serra Talhada, os jogadores do Serrano costumam
se divertir à noite no restaurante Chapa Quente, na praça central. Ao contrário
dos outros, porém, eles só bebem cerveja quando o maître Antonio Anchieta
Nogueira está de folga. Toinho, como é conhecido, zela com empenho de zagueiro
durão para afastar os atletas do álcool.
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Serra Talhada |
O trabalho no Chapa Quente é o seu sustento. O maior prazer, o futebol.
Ex-lateral-esquerdo do Serrano, hoje, aos 33 anos, é o técnico.
– Mas, professor, só um copinho –, pedem os jogadores.
– Não tem professor. Aqui não vão beber –, rebate.
Nem lá nem na casa de shows Batukão, da família de Toinho, onde ele
criou o aclamado coquetel Suor de Virgem.
Não se trata de uma vocação militar frustrada, como a de muitos
técnicos linha-dura que se proclamam disciplinadores. Tanto que, depois das
vitórias, a equipe comemora com chope e pagode. Toinho diagnostica o alcoolismo
como uma das maiores armadilhas na vida dos jogadores do sertão. Muitos jogaram
fora suas carreiras. Há quatro adolescentes no clube que entornam até cair, no
bar Cariri. “Digo a eles que tem de escolher entre o vício e o futebol profissional”.
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A planta cannabis sativa. |
Toinho já viu muita coisa. Nos anos 70, engatinhando nos juvenis do
extinto Comercial, foi jogar em Bodocó, cidade das redondezas. Num quarto,
encontrou dois companheiros fumando maconha. Um lhe disse que só conseguia
jogar “doidão”. Como Serra Talhada é grande produtora de cannabis sativa,
Toinho se acostumou – embora não goste – aos gritos de “maconheiro” dos
torcedores rivais.
Sua militância de educador não se restringe ao comportamento social.
Fascinado pelo São Paulo bicampeão mundial de 1992 e 1993 regido por Telê
Santana, ele comanda os treinos limitando a dois os toques de cada jogador.
Irrita-se, como Telê, com os que seguram demais e se envaidece com elogios
sobre o toque de bola. Bom discípulo do técnico mineiro, grita à beira do
campo, exigindo rapidez:
– Bitoque, bitoque.
Nas preleções, conclama o time a recordar o futebol-arte competitivo do
São Paulo campeão:
– É isso o que eu quero.
Para Paulo Moura, técnico do Ferroviário, mais novo time profissional
de Serra Talhada, é fácil barrar o meia Robério. Difícil é explicar a exclusão
ao presidente do clube, Robério Alvim Cavalcante, que vem a ser o boleiro
condenado à reserva. “Como jogador, engulo sapos; como dirigente, faço
cobranças”, diferencia Robério, rindo.
Com o meia Aron Lourenço Araújo, o dilema do treinador se repete – Aron
preside o Conselho Deliberativo do Ferroviário. O atacante Washington, craque
da equipe, também é cartola – integra o conselho. O lateral-direito Duda é
outro conselheiro.
Dirigentes já foram barrados, mas nem por isso Paulo Moura teve a
posição ameaçada. Moura comandava o time no futebol amador e está para estrear
com ele no profissionalismo, na segunda divisão do estado. Se o ambiente fica
pesado no clube, tudo se resolve em almoços familiares. Os irmãos Robério e
Washington são cunhados de Moura e primos de Aron e Duda. O mais fiel torcedor,
com o Ferroviário onde o Ferroviário estiver, é o aposentado Godofredo Alvim da
Silva, pai de Robério e Washington, sogro de Moura, tio de Duda e primo de
Aron.
É o futebol em família.
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Mascote do Ferroviário, de Serra Talhada. |
Um dos motivos da transformação do time em profissional é esportivo: o
Ferroviário cansou de ganhar como amador. Outro, tão importante ou mais, são as
querelas políticas de Serra Talhada. O Serrano, profissionalizado em 1996, era
incentivado pela administração municipal da coligação PDT-PSB, derrubada no pleito
de outubro. O presidente do Serrano, José Raimundo Filho, era o secretário de
Esportes do município. Com a vitória eleitoral do novo prefeito, Tião Oliveira,
o vice-presidente do Ferroviário, Ronaldo Melo, assumiu a secretaria. O novo
governo resolveu então apoiar uma equipe rival do Serrano na segunda divisão.
Como a Federação Pernambucana desaconselha dois times profissionais em
cidade com menos de 100 mil habitantes, os dirigentes do Ferroviário pediram ao
líder do PFL na Câmara dos Deputados, Inocêncio Oliveira, irmão do prefeito,
para interceder.
O que move os jogadores, no entanto, não são antagonismos políticos,
mas o entusiasmo pelo futebol. Seis, entre os quais o bancário Robério, o
eletricitário Washington e o inspetor da Fundação Nacional de Saúde Aron, não
recebem nada: tiram do bolso para dar uma força ao clube.
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Padre Cícero. |
O profissionalismo ainda estimula a miragem do sucesso, mesmo para quem
chega tarde. O lavrador Reginaldo Batista de Melo, 29 anos, começou a trabalhar
na agricultura aos dez. Ele ajudava o pai, Romão José de Melo, conhecido como
Ciço porque deveria se chamar Cícero, homenagem ao líder religioso cearense
Cícero Romão Batista. Como o pároco local era adversário político do padre
Cícero, vetou o nome escolhido pelos avós do atleta-lavrador Reginaldo.
O jogador está morando na cidade, mas vai muitas vezes por semana à
roça dos pais. Eles plantam milho, feijão, cebola, algodão e frutas, no solo irrigado
pelo rio Pajeú, que passa ao lado da fazenda de 98 hectares, trocada por um
caminhão usado. Com um filho de nove anos de um casamento e outro, de uma
namorada, a caminho, Reginaldo crê que ainda é tempo de vencer no futebol. “É
um sonho antigo, que agora pode ser realidade”.
Futebol é paixão da família camponesa. No almoço de sábado, cercada por
som de pássaros, ela exalta o último gol de Roberto Carlos pelo Real Madrid,
visto na TV. E planeja a próxima romaria a Juazeiro do Norte, onde vai rezar
para o padre Cícero.
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Arquibancadas do estádio Pereirão. |
Serrano e Ferroviário preparam-se para um confronto que promete
incendiar o Pereirão. Será o primeiro clássico entre duas equipes profissionais
de Serra Talhada. Prevê-se lotação, com 6 mil pessoas. Nos anos 70, o
Comercial, único time profissional da cidade, brilhou na primeira divisão, mas
fechou na década seguinte por causa de ranços políticos que o implodiram.
A empolgação com o jogo supera a do xaxódromo, quadra onde se baila o
xaxado, dança originária do sertão pernambucano que cangaceiros arrastaram até
a Bahia. Haverá carreata para convocar a população ao estádio, onde Garrincha,
em fim de carreira, fez exibição há quase três décadas.
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Serra Talhada, conhecida como a capital do Xaxado. |
Os times são parelhos. A folha salarial do Serrano é de 4500 reais. A
do Ferroviário, de 3 mil reais. O Ferroviário é mais jovem, aprendeu com as
dificuldades do adversário em 1996. Na estréia, sem tempo para inscrever
qualquer goleiro, o Serrano botou um jogador de linha no gol e perdeu.
Com descendentes de cangaceiros nos dois lados, o empenho será
semelhante. Deve pesar o trabalho dos preparadores físicos João Bala (Serrano,
estudante não –formado de educação física) e Anazildo de Carvalho (Ferroviário,
policial militar sem formação acadêmica). A espionagem é oficial. Amigo do
técnico adversário, o treinador do Serrano, Toinho, assistiu a um coletivo do
Ferroviário. Saiu meia hora depois: “Já sei como a banda toca”, contentou-se.
Mais famosa personalidade oriunda de Serra Talhada, Virgolino Ferreira
da Silva, o Lampião, ainda provoca polêmica entre seus conterrâneos. Em 1991,
foi organizado um plebiscito em que 79% dos milhares de eleitores disseram que
ele foi herói e 21%, bandido.
Nascido no final do século XIX, Lampião aderiu a um bando de
cangaceiros em 1917, um ano após começar a rixa entre a sua família e a do
fazendeiro Zé Saturnino. Morreu numa emboscada em 1938.
Para uns, Lampião foi um rebelde social, um Robin Hood que assaltava
para dar comida aos flagelados. Para outros, um bandido impiedoso. O zagueiro
Boi, do Serrano, é primo de Lampião. O pai do técnico do Ferroviário, Moura,
foi cangaceiro. Um avô do meia Reginaldo, companheiro de venturas do Rei do
Cangaço.
Sobre Mário Magalhães:
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Nasceu no
Rio de Janeiro na primeira semana de abril de 1964. Formou-se em jornalismo na Escola
de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). É
jornalista desde 1986. Trabalhou na "Tribuna da Imprensa", em "O
Globo" e "O Estado de S. Paulo" antes de ingressar na Folha,
em 1991.
Na Folha, foi
editor-assistente do "Folhateen", repórter, editor-assistente e
colunista de Esportes, repórter da Sucursal do Rio e repórter especial. Deixou
o jornal em 2003 para escrever a biografia do guerrilheiro Carlos Marighella
(1911-69), livro que será lançado pela Companhia das Letras em 2012. Voltou em
2006 como repórter especial, baseado no Rio.
Entre prêmios e menções honrosas, recebeu duas vezes o Prêmio Folha de Reportagem, duas vezes o Prêmio da Sociedade Interamericana de Imprensa, o Grande Prêmio Esso de Jornalismo, o Prêmio Lorenzo Natali (da União Européia), o Prêmio Vladimir Herzog, a Medalha Chico Mendes de Direitos Humanos e o Prêmio Direitos Humanos-RS.
Entre prêmios e menções honrosas, recebeu duas vezes o Prêmio Folha de Reportagem, duas vezes o Prêmio da Sociedade Interamericana de Imprensa, o Grande Prêmio Esso de Jornalismo, o Prêmio Lorenzo Natali (da União Européia), o Prêmio Vladimir Herzog, a Medalha Chico Mendes de Direitos Humanos e o Prêmio Direitos Humanos-RS.
Craque é você, André. Muitíssimo obrigado. Abração, Mário
ResponderExcluirGrande Mário. Saudades do amigo. Depois me passe seus contatos pelo meu e-mail a-ribeiro@uol.com.br
ResponderExcluirCaro Mário,
ResponderExcluirSou professor de história, pesquisador e escritor, estou realizando um trabalho de pesquisa que será publicado em breve sobre o extinto time do Comercial. Se possível, gostaria que você participasse desse trabalho com um relato sobre sua experiência durante a elaboração da matéria sobre o Serrano e o Ferroviário.
Um forte abraço,
Paulo César Gomes / Serra Talhada - PE (e-mail: pcgomes-st@bol.com.br)