Na série especial sobre o centenário de
Nelson Rodrigues mais uma crônica genial. Talvez a que sintetize o estilo e a
forma com que Nelson enxergava o trabalho de um jornalista, esportivo ou não. O
“acréscimo” à realidade sempre foi a sua marca registrada e nessa crônica, publicada
na revista Manchete do dia 31 de março de 1956, Nelson fala sobre a falta de
sensibilidade dos repórteres brasileiros presentes à cobertura da participação
brasileira durante os Jogos Pan-Americanos daquele ano.
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Jogadores da Seleção Brasileira que participaram do Pan-Americano: da esquerda para a direita, Luizinho, Bodinho, Larry, Ênio Andrade e Chinezinho. Crédito: www.internacional.com.br |
Tudo porque a equipe brasileira
foi representada na competição por uma seleção formada só por gaúchos. Por causa
de crônicas como essa, muitos críticos questionavam o extremo nacionalismo de
seus textos. Como diria Nelson para eles: “o óbvio sempre será ululante”.
Inspirado na sua maneira de pensar e escrever, o texto abaixo nos faz refletir
sobre a produção da atual crônica esportiva onde faltaria, o que para Nelson era
fundamental: “o fato em si mesmo vale pouco ou nada. O que lhe dá autoridade é
o acréscimo da imaginação”.
O passarinho
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Olavo Bilac |
Quando o Brasil levantou o
Pan-Americano, eu só lamentei uma coisa: – que Bilac não estivesse vivo. Não o
Bilac da “Frinéia”, do “Nunca morrer assim”, das “Virgens mortas”, mas sim o
Bilac dos tiros de guerra. Infelizmente, não mais existem, nem os tiros, nem o
poeta.
E é pena.
Outrora, cada acontecimento tinha um Homero à mão, ou um
Camões, ou um Dante. Recheado de poesia, entupido de rimas, o fato adquiria uma
dimensão nova e emocionante.
Ora, faltou, justamente, à
vitória gaúcha, o seu poeta. Os correspondentes brasileiros, que estavam no
México, deviam mandar, de lá, telegramas rimados, ungidos de histerismo cívico.
Mas como estamos em crise de Bilacs, o fabuloso triunfo só inspirou mesmo uma
pífia correspondência, que nos enche de humilhação patriótica e vergonha
profissional. Cada cronista da delegação, em vez de babar materialmente de
gozo, mandou dizer ao seu jornal o seguinte: – “que os argentinos jogaram mais,
que os argentinos mereceram vencer e que os brasileiros estavam apáticos”.
Vejam vocês em que dá a mania da
justiça e da objetividade! Um cronista apaixonado deveria de retocar o fato,
transfigurá-lo, dramatizá-lo. Daria a estúpida e chata realidade um sopro de
fantasia. Falaria com os arreganhos de um orador canastrão. Em vez disso, os
rapazes cingiram-se a uma veracidade parva e abjeta. Ora, o jornalista que tem
o culto do fato é profissionalmente um fracassado. Sim, amigos, o fato em si
mesmo vale pouco ou nada. O que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação.
Por outras palavras: – os cronistas
patrícios teriam que dizer, do México, que fomos os maiores, que teríamos
papado o próprio escrete húngaro e que houve, no mínimo, umas 35 bolas na
trave.
Dirá alguém que seria uma inverdade. De acordo. Mas o fato ganharia em
poesia, em ímpeto lírico, em violência dramática.
E, além disso, ai do repórter
no dia em que fosse um reles e subserviente reprodutor do fato.
A arte
jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento, e, de qualquer
forma, negar a sua imagem autêntica e alvar.
Modelo de eficiência profissional
foi aquele repórter que viu um incêndio. Entre parênteses: – já contei o
episódio, mas vou repeti-lo, a título ilustrativo. O jornalista espia o fogo e conclui
que se tratava, na verdade, de um incêndio vagabundo, uma vergonha de incêndio.
Qualquer mãe de família o apagaria com um humilhante regador de jardim. Volta o
repórter para a redação e, lá, escreve uma página de jornal sobre o fracassado
sinistro. E mais: – põe um canário inventado no meio das labaredas, um canário
que morre cantando. No dia seguinte, a edição esgotou-se. A cidade inteira, de
ponta a ponta, chorou a irreparável perda do bicho.
Vejam vocês a lição de vida e de
jornalismo: – com duas mentiras, o repórter alcançara um admirável resultado
poético e dramático.
O que faltou aos nossos correspondentes do México foi,
justamente, o passarinho. Fizemos uma África miserável, uma ilíada tenebrosa,
papamos o Chile, o Peru, o México, a Costa Rica e quase a Argentina. E nenhum
dos confrades, adidos à delegação, lembrou-se de recriar o canário, de
assassiná-lo outra vez. Sem passarinho, não há jornalismo possível.
Sobre o centenário de Nelson Rodrigues:
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by Amorim |
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