Arte e futebol. Futebol e Arte. Um faz com os
pés o que o outro com apenas dois dedos transforma em magia. Entre os vários
artistas que já pintaram o futebol, o Brasil perdeu há 53 anos um de seus
melhores representantes: Candido Portinari morreu no dia 06 de fevereiro de
1962. E entre eles, Portinari é um dos raros a escrever. Tem diversos poemas que retratam sua vida e o contexto de várias de suas obras.
Está lá, na página 163 do delicioso livro “Portinari
– O pintor do Brasil” (Boitempo Editorial, 2003) escrito por Marília Balbi sobre
a vida e a obra de Portinari:
“...Cândido
Portinari nasce no dia 30 de dezembro de 1903, em uma fazenda de café, perto
da cidade de Brodósqui, um pequeno vilarejo com setecentos habitantes, no Estado
de São Paulo. É o segundo de doze filhos de Baptista Portinari e Dominga Torquato,
ambos italianos da região do Vêneto. Em 1911 começa a freqüentar a escola,
não indo além do terceiro ano. Em 1914, faz seu primeiro desenho conhecido: um
retrato do compositor Carlos Gomes. Em 1919 decide seguir carreira de pintor e parte
para o Rio de Janeiro, onde se matricula como aluno livre na Escola Nacional de Belas
Artes (ENBA). Na então capital federal, tem sua formação artística, durante
oito anos”.
Mas para se conhecer por completo a vida e a
obra de Portinari vale acessar o site www.portinari.org.br,
um projeto fantástico organizado pelo filho do pintor, João Portinari, que
reúne acervo de 30 mil documentos, fotos e outros registros históricos
relacionados às quase 5 mil obras catalogadas de Portinari.
Em uma das seções do imenso site, encontramos
as obras catalogadas de Portinari sobre o tema futebol. Uma viagem no tempo que
revela o fascínio do artista por sua terra e, principalmente, pelo jogo que
encanta toda criança brasileira. São 18 obras lindíssimas que valem a pena
serem vistas com carinho. Basta acessar:
Aqui, destacamos apenas duas delas:
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1958 Pintura a óleo/madeira 65x80cm Rio de Janeiro, RJ Assinada e data na margem inferior à direita "Portinari 958" Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ. |
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C.1958 Pintura a óleo/madeira 31.5 x 23.5cm Rio de Janeiro, RJ Sem assinatura e sem data Coleção particular, São Paulo, SP. |
No ano passado, o jornalista blogueiro que mantém
o espetacular blog “A pelada como ela é”, Sérgio Pugliesi postou três artigos
sensacionais, talvez o mais completo sobre a ligação de Portinari com o
futebol. Vale a pena acessar e ler na íntegra o material raro obtido por ele junto ao filho
do artista, João Portinari (inclusive uma entrevista com o filho de Portinari,
também boleiro peladeiro no Rio de Janeiro).
Um
verdadeiro documento histórico. O mais importante que une
definitivamente a imagem de um de nossos mais importantes artistas do século 20
ao futebol é uma foto de Portinari perfilado no time da Escola Nacional de
Belas Artes, no início dos anos 1920, resgatada junto ao acervo mantido por João
Portinari, filho do artista.
Literatura na Arquibancada destaca aqui um trecho
de um dos textos
escritos por Pugliesi, ilustrados com mais algumas telas produzidas por
Portinari e encontradas na seção do site mencionado pouco acima:
“Mesmo com uma
perna bem menor do que a outra, o menino Candido se aventurava nos campos de
várzea de sua cidade, no interior de São Paulo. Era impossível não tentar.
Colado à sua casa havia um campinho e bastava abrir a porta da cozinha para ele
quase bater a cabeça numa das balizas. Apesar disso, seus pés descalços nunca
criaram jogadas brilhantes. Então, resolveu investir nas mãos. Não virou
goleiro como alguns podem imaginar. Fora das quatro linhas, sentado num
banquinho, deu seus dribles mais desconcertantes e, tal qual um reserva
resignado, criou parte de sua obra prima.
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[1933] Pintura a óleo/tela 49.5 x 124cm Brodowski, SP. Assinada no canto inferior direito "Portinari". Sem data Banco Bradesco, Osasco, SP. |
Como observador,
coloriu os campos a seu modo, vestiu o time preferido com as cores mais vivas
da aquarela e, de pincelada em pincelada, conquistou o mundo. O menino ruim de
bola cresceu e virou Candido Portinari, maior expoente da pintura modernista
brasileira. Em sua monumental história, contabilizou 5 mil obras e nunca
esqueceu de retratar os campos de várzea, uma espécie de amor não
correspondido.
– Era como se
pintasse meninas que nunca deram bola para ele – comparou o filho, esse sim,
bom de bola, João Candido Portinari, fundador e diretor do Projeto Portinari,
responsável pela catalogação da obra do pai.
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Portinari Crédito: http://elfikurten.blogspot.com |
Tímido, o pintor
expressava suas paixões com cores e palavras, como no trecho editado de uma de
suas poesias publicadas no livro "O menino e o povoado": “Aos 8 anos
tive uma namorada branca branca. Nunca lhe disse uma palavra.
Depois nunca mais
a vi e não ouvi seu nome. Namorei tantas meninas e ninguém soube”.
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Futebol 1935 Pintura a óleo/tela 97 x 130cm Rio de Janeiro, RJ Assinada e datada no canto inferior direito "Portinari 935 C. Portinari Rio" Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ. |
Foi exatamente
assim com os campinhos. Numa rápida navegada no site do projeto, a equipe do A
Pelada Como Ela É encontrou 18 pinturas de campos de várzea, quase todos em
Brodowsky, terra natal. Numa delas, um autoretrato, “Futebol”, aparece cercado
de meninos e o que o diferencia do grupo é a perna menor do que a outra. Só
especialistas para atentarem ao detalhe.
(...)
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Portinari, a esposa Maria e o filho João, em 1941. Créditro: http://elfikurten.blogspot.com |
As reuniões na
casa de Candido Portinari eram frequentes e animadas, entre outros, por
Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jorge Amado e
Adalgisa Nery. Certa vez João Portinari chegou em casa e irritou-se quando viu,
numa rodinha musical, um homem tocando seu violão. “Vai desafiná-lo”, pensou.
Saiu irritado, batendo porta e só anos depois soube tratar-se do maestro
Villa-Lobos. No Rio, João sentia-se verdadeiramente feliz e divertia-se com as
loucuras do amigão Alcyr, que se enchia de caipirinha nas boates e após o
derradeiro gole subia na mesa e gritava “Tequila!!” antes de cair desmaiado.
Bons tempos! Mas um dia a ficha caiu e João resolveu olhar para trás. Foi
quando aprofundou-se e encantou-se com a história do pai.
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Jogo de Futebol em Brodwski [1933] Pintura a óleo/tela 95 x 124cm (estimadas) Brodowski, SP Ateliê do artista. |
Reuniu documentos,
fotos, livros, cartas, toda uma vida. A nosso pedido procurou algum registro
que ligasse o pai ao futebol e achou uma foto rara, do início dos anos 20, de
Portinari no time de pelada da Escola de Belas Artes. Emocionou-se. Na poeira
dos arquivos, também achou uma reportagem de O GLOBO, muito antiga, intitulada
"Como trabalham e sonham nosso pintores” e leu um trecho em voz alta:
“Tenho, também, uma delícia grata e profunda. É quando componho, por exemplo,
"Jogo de futebol em Brodowski", a cidade em que me fiz e onde a minha
infância, sob a inspiração do modesto dinamismo do meio, embebeu-se de
miragens, impregnou-se de melancolias ou sonhos. As imagens que ali se afirmam,
a bola de meia, os pés descalços, os trancos, as caneladas, a cerca de pau,
tudo isso são imagens impressas na minha memória, que se reúnem e gritam a um
esforço evocador, que cruzam os caminhos do meu mundo secreto”.
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Brodowski 1958 Pintura a óleo/madeira 65.5 x 100cm Rio de Janeiro, RJ Assinada e datada na metade inferior à direita "Portinari 58" Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ. |
No fim do texto, o
filho coruja sorriu orgulhoso. Balançou a cabeça como um menino levado assumindo
o reconhecimento tardio ao talento do pai e ao mesmo tempo transparecendo uma
felicidade gigante por ter despertado a tempo de abraçar todo o seu passado e
hoje viajar o mundo de mãos dadas com o seu melhor amigo”.
Sobre Sérgio Pugliesi:
É jornalista e apaixonado por futebol. Durante 15 anos chefiou as redações de JB,
O Dia e O Globo. Hoje, mantém o blog “A pelada como ela é”:
Futebol, Brinquedo de Menino Pobre
ResponderExcluirO Futebol, “brinquedo de menino rico”,
virou brinquedo do Brasil mestiço...
João Maximo, Brasil Um Século de Futebol
Menino pobrinho e descalço
Com amarelão
Não tendo bola de capotão
Brinca com uma laranja lá embaixo
Ou chuta uma latinha de massa de tomate
Caroço de manga, ou caroço de abacate
Quando não chuta um velho sapo seco
De riacho,
no campinho ralo de um beco
Menino pobrinho e descalço
Com amarelão
Finta o zagueiro polaco, e o toco
No campinho inclinado de chão
E finta a arvore, o cupinzeiro, o devão
Feito um pobre garrincha banguela
Quando não, finta a miséria; sem pão
No sufoco,
de um gueto humilde da favela
Menino pobrinho e descalço
Com amarelão
Não tem o que comer, sem chão
Mas na ruela já se revela craque
Feito um caipira janjão de almanaque
Serelepe dribla, finta, faz firula, gozação
Mal sabe o sobreviver do dia de amanhã
Feito um pateta,
brinca na cor-de-rosa terrinha chã
Menino pobrinho e descalço
Com amarelão
O futebol moleque - sua bendição
Toda sua vida ali; brincar de ser tão
Craque de bola, na sua condição
Se sobreviver com sorte, um dia, então
Será atleta, rico, famoso, da seleção
Ou nunca será, não,
morrerá. Entre a droga e a inanição...
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Silas Corrêa Leite
E-mail: poesilas@terra.com.br
WWW.portas-lapsos.zip.net