O ano do
dragão, video game e MMA
Por Katia
Rubio
É muito bom
sair um pouco da rotina para a gente poder enxergar o que está tão perto de
nossos olhos, mas acostumados que estamos com o cotidiano já não são capazes de
enxergar as coisas mais óbvias. Dizem que foi assim com os grandes inventores e
descobridores de todos os tempos. Isso ocorre com frequência quando trabalhamos
sobre um texto. Escrevemos, lemos, apagamos, refazemos tantas vezes que já não
enxergamos mais os erros, as palavras e ideias repetidas e as conclusões que,
as vezes, estão logo ali, diante de nosso nariz, com uma tiara de neon e uma
melancia no pescoço. E então, chega alguém de fora, lê, elogia e aponta a
conclusão – não escrita – que esteve sempre ali.
Por isso tenho
por hábito deixar meus textos “fermentarem”, como a gente faz quando amassa
pão. Sempre achei mágico aquele processo todo: água quente para fazer o
fermento ”acordar”, depois um ovo, um pouco de óleo ou margarina e aí a
farinha… uma, duas, três xícaras e amassa, amassa e amassa mais um pouco. Volta
pra tigela, já como uma bola com aquele cheiro próprio do fermento que está
agindo, coberto com um pano sequinho em um lugar quente e sem vento. E daí vem
o milagre: depois de 50 minutos lá está aquele produto vivo e dinâmico que para
ser assado precisa ser uma vez mais amassado e formatado para ir ao forno.
Realmente, fazer pão e escrever são coisas muito parecidas. E assim como posso
escolher diferentes farinhas e líquidos para fazer pães com diferentes sabores,
posso escolher diferentes palavras e formas de escrever para expressar minhas
ideias.
Hoje, enquanto
cozinhava, pensava no fenômeno MMA e UFC.
Não pretendo
aqui fazer reflexões moralistas acerca das lutas, principalmente após orientar
uma tese de doutorado sobre a genealogia do judô brasileiro, de Alexandre Velly
Nunes, leitura obrigatória para estudiosos e amantes das artes marciais. Uma
preciosidade, posso afirmar. O que tento entender é o que acontece com uma
sociedade, em pleno século XXI com tantas inovações e avanços no campo das
ciências biológicas e sociais, reproduzir comportamentos anteriores ao
nascimento de Cristo. Farei um esforço para poder ser entendida.
Observo que as lutas exercem grande fascínio, principalmente entre os jovens.
Não é por acaso que as encontramos em inúmeros seriados infantis de National
Kid a Power Rangers, o que atesta a atemporalidade desse entretenimento. Penso
também que o imaginário envolvido nas lutas acaba por evocar um universo mítico
que permite emergir toda ordem de criaturas monstruosas, como bem observamos
nas diferentes séries que ano após ano se repetem em diferentes emissoras. Vale
ressaltar que em todos episódios das diferentes séries o que prevalece nos
roteiros é uma estrutura maniqueísta onde, obviamente, os mocinhos ganham dos
terríveis vilões, sejam eles seres de outro mundo, uma figura mitológica ou um
ser humano com poderes supremos, quase sempre aniquilando-os, destruindo-os,
restituindo em seguida a humanidade do aniquilador.
Confesso que
esse tipo de produção nunca exerceu sobre mim qualquer fascínio, mesmo quando
eu era garota e via o “Nachonaro Kido” na sessão Zás Trás. Mas, acho que eu não
sou das melhores referências para isso porque a TV nunca me encantou. Até que
meu filho Toshihiro surgiu. Gerado em um mundo de tecnologia acessível e virtual,
desde cedo, mas muito cedo mesmo, ele se envolveu com o mundo dos games. Lia,
jogava, colecionava publicações e ainda no ensino fundamental era uma espécie
de consultor para assuntos “jogos” em sua escola. Tentei por muito tempo
incentiva-lo a buscar jogos próximos do RPG, mas é claro que os mais desejados
eram aqueles que envolviam lutas. Lembro como ficava irritada com os jogos de
lutas (e depois descobri que não eram apenas os de lutas) e a situação limite
do “Ih. Morri”. Sentia aquilo como a banalização da morte, da finitude e um
desrespeito pela situação do embate contra um oponente, fosse ele mais forte ou
fraco. Percebo hoje que a lógica que me movia e me mobilizava era aquela
praticada no “do”, entendida como caminho.
Agora sei que
Jigoro Kano tentou evitar a inclusão do judô no programa olímpico por conta de
um receio concreto que seu “caminho da suavidade” se tornasse apenas um
combate. Por entender que o judô era um caminho para muitas coisas,
principalmente para a educação, Kano evitou o quanto pode fazer da luta apenas
uma briga. Isso porque as referências culturais que trazia do Japão davam a ele
uma dimensão própria do que eram as lutas para seu país em diferentes momentos
históricos em que elas se desenvolveram.
Como aponta
Nunes (1) a formação dos monges chineses e coreanos e a classe dos Samurais são
alguns exemplos bem conhecidos da formação de lutadores nessas regiões.
Nesses
locais, a formação para o combate quase sempre esteve associada a rituais
religiosos, ao estabelecimento de padrões de comportamento e a uma ética
particular. Para o treinamento utilizavam-se formas mais brandas e menos
violentas de combater, daí a transição para o esporte.
Ontem a tarde
fui assistir às comemorações da entrada do ano novo chinês, o Ano do Dragão, no
Templo Zu Lai, próximo a Cotia, em São Paulo. E todas essas questões invadiram
meu sótão acordando meus macaquinhos que andavam por lá adormecidos. Entre a
dança do dragão, dos leões, apresentações de tai chi chuan e kung fu pensei no
quanto tudo aquilo é significativo dentro do contexto em que foi desenvolvido.
Arte, meditação, educação, religião… tudo ali se mistura de forma homogênea
onde nem o mais audaz cartesiano é capaz de separar, dividir,
compartimentalizar.
E então me
lembrei uma vez mais do mestre Carl Gustav Jung que tenta explicar no livro O
Segredo da Flor de Ouro a impossibilidade de se praticar os orientalismos de
forma plena fora do Oriente. E isso se deve a uma razão simples: por melhor que
se possa reproduzir o que se passa no Oriente nenhum lugar será como lá. O que
sempre veremos serão simulações, e as vezes simulacros como diria Baudrillard,
do Oriente, mesclados à cultura local e suas idiossincrasias.
Então, embora lá
estivessem monges budistas, diplomatas e membros da comunidade chinesa, aqueles
rituais todos que estavam sendo apresentados já eram uma mescla com a cultura
brasileira.
E com esses
mesmos argumentos e pensamentos voltei a lembrar no UFC e MMA. Isso porque não
vejo mal nenhum em entender esses espetáculos como quaisquer outros onde alguns
seres iluminados conseguiram vislumbrar uma possibilidade de fazer um grande
negócio, movimentando milhões de dólares, explorando as habilidades de algumas
pessoas fora da média. Nada que faça surpreender em um modo de produção capitalista!
Por isso lutadores migram de suas modalidades amadoras, olímpicas ou
ritualísticas porque desejam buscar fama e fortuna com um tipo de atividade que
pode lhes proporcionar uma vida melhor. Não é assim em outras profissões?
Então paremos de escamotear, de tergiversar ou enganar a quem quer que seja.
Que não se
confundam essas práticas de entretenimento com esporte. Muito embora tenham
regras definidas, sejam institucionalizadas e organizadas não devem ser
entendidas e confundidas com esporte.
Entendo que
tanto o UFC como o MMA são vídeo games reais. Os combatentes são avatares
criados a partir de uma referência da necessidade de luta, que para ganhar
dramaticidade são nomeados com distinções míticas ou simbólicas, valendo
prêmios milionários.
E se no passado o imperador de sua tribuna usava os
polegares para determinar a morte do derrotado, agora temos a televisão, cuja
audiência qualificada aponta o céu ou os infernos para o menos habilidosos ou
desfortunados no combate.
Há espaço para
muitas manifestações culturais e formas de entretenimento na sociedade
contemporânea e não me julgo arauta da moralidade e dos bons costumes para
promover uma cruzada contra o MMA e o UFC. Entendo que essas competições não
são menos nocivas que o BBB ou algumas novelas que impõe padrões de
comportamento. O que talvez devesse ter pedido ao dragão, nesse ano que se
inicia, é que definitivamente essas manifestações de movimento não sejam
confundidas com o esporte.
(1) NUNES, A. V. (2011) A influência da
imigração japonesa no desenvolvimento do judô brasileiro: uma genealogia dos
atletas brasileiros medalhistas em jogos olímpicos e campeonatos mundiais. Tese
de Doutorado. Escola de Educação Física e Esporte. Universidade de São Paulo.
Sobre Katia Rubio:
Professora
associada da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo,
orientadora nos programas de Pós-graduação da EEFE-USP e FE-USP. Escreveu e
organizou 15 livros acadêmicos nos últimos 10 anos na área de Psicologia do
Esporte e Estudos Olímpicos abordando os temas psicologia do esporte, estudos
olímpicos, psicologia social do esporte, psicologia do esporte aplicada e
esporte e cultura. É também bacharel em Jornalismo na Faculdade de Comunicação
Social Casper Líbero (1983) e Psicologia na PUC-SP (1995). Coordena atualmente o Centro de Estudos
Socioculturais do Movimento Humano da EEFE-USP e foi presidente da Associação
Brasileira de Psicologia do Esporte entre os anos de 2005 a 2009.
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