No Literatura na Arquibancada sempre dissemos que algumas
letras de músicas também podem ser consideradas “obras literárias”. Por isso,
vira e mexe, apresentamos algumas dessas criações. Agora, lembrar de um pequeno
trecho de uma música para provocar a reflexão sobre algum fato ou momento do
esporte brasileiro só mesmo para quem convive diariamente com os dramas vividos
pelos atletas brasileiros.
É o que propõe abaixo a psicóloga do esporte, Dra. Katia
Rubio, em mais um dos artigos publicados em seu blog http://blog.cev.org.br/katiarubio/
. Inspirado no trecho da música “Comida”, criada pelo grupo de rock “Titãs”,
ela reflete sobre a estrutura do esporte brasileiro, no presente e no passado.
As imagens que ilustram esse post podem ser encontradas na Mostra Permanente de
Arte do Esporte, no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP), no
Ibirapuera, criada em 2009 pela Secretaria de Esportes, Lazer e Recreação de
São Paulo.
Obrigação,
desejo, necessidade, vontade.
Acompanho de
perto alguns grupos de atletas profissionais com diferentes origens e estruturas
de carreira. Isso me faz refletir sobre as disparidades que envolvem essa
atividade profissional ainda tão nova nesse país em que o amadorismo ainda
prevalece na condução do fazer esportivo.
Como não poderia
deixar de ser isso remete a minha própria história quando a perua o clube ia
buscar a mim e várias colegas na porta da escola onde estudávamos, três vezes
por semana para treinarmos a alguns quilômetros de nosso bairro. Ao final do
dia, satisfeitas, ganhávamos um misto quente. Uniforme só era usado em dia de
jogo.
O máximo que se
podia almejar era uma bolsa do “Adote um atleta” onde algumas empresas exerciam
uma espécie de mecenato, contribuindo assim para o desenvolvimento do esporte
brasileiro. Essa é a pré-história do esporte profissional na cidade de São
Paulo. E nós, apaixonadas pela competição, por treinar e jogar, independente do
dia da semana ou mês do ano, buscávamos por uma quadra e pessoas para jogar
mesmo que não nos conhecêssemos anteriormente.
Ok. Essa era a
fase romântica do esporte dirão alguns e eu concordarei. Mas, lembro de
disputas de Campeonatos metropolitanos, municipais e estaduais onde ginásios como
o Baby Barione, no DEFE da Água Branca, ficavam lotados com muito mais que os
familiares dos atletas. Lá aprendi o significado da expressão “dar o sangue”.
Ou seja, tínhamos pouco ou quase nada e dávamos um show dentro de nossas
limitações técnicas e estruturais. As vezes os desavisados me falam: “Imagine
se vocês ganhassem para isso?”
Depois de 17
anos, atuando como psicóloga do esporte, tenho dúvidas se o dinheiro nos faria
diferentes, para melhor.
Assisto no
presente uma condição de vida para atletas jovens e maduros “como nunca antes
na história desse país”. Isso é fato. Vejo sobrar coisas básicas como tênis,
bermudas e camisetas, itens dos mais cobiçados há três décadas. Assisto
maravilhada a facilidade de intercâmbio onde a possibilidade de ir e vir em
menos de 40 horas comprova que o mundo realmente ficou plano. Isso também levou
a uma democratização do treinamento. Hoje não há segredos sobre o que se faz
“do outro lado do mundo”. E o resultado é uma possível elevação da auto-estima
de nossos atletas que passam a se sentir mais competentes em relação a si
próprios e mais confiantes em relação aos estrangeiros.
E diante disso
seria de presumir que vamos muito bem, obrigada.
Mas,
infelizmente, a resposta é não. Talvez o esporte se confirme como o palco das
dramatizações sociais, como diria Roberto da Matta. A crise geracional tão bem
identificada em outras atividades sociais se manifesta de forma evidente nessa,
que por mais de um século viveu da perseverança e boa vontade de alguns
abnegados que acreditaram no esporte como uma estratégia para dar uma formação
diferenciada à juventude e, quem sabe, mudar o mundo.
Falo tudo isso
para tentar elucidar o enigma em forma de discurso: “o esporte é para mim
apenas uma obrigação”.
Recentemente
participei da avaliação de um grupo de atletas profissionais, olímpicos e
futuros olímpicos, e constatei estarrecida a insatisfação de um atleta que se
ainda não sabe o que quer da vida, pelo menos sente que não é o esporte a razão
da sua existência. E porque ele então continua? Pelo primeiro motivo apontado
pelos estudiosos da iniciação esportiva: porque os pais assim o querem. E o que
espanta é que embora a literatura nos mostre isso custamos a acreditar que essa
situação de fato ocorra e os danos que isso pode causar na vida do jovem.
Os
desdobramentos disso para o esporte são óbvios: maus resultados, competições
burocráticas e ausência do combustível básico da prática esportiva – a emoção.
E assim como ocorre com médicos, advogados, engenheiros e tantos outros profissionais
que determinam a vida futura do filho, como se fosse uma dinastia, é comum que
pais que tenham tido uma experiência frustrada no esporte depositem em seus
filhos seus desejos… e suas frustrações. E por vezes, não dêem aos filhos a
chance de serem o que simplesmente desejam.
Sim, temos que
admitir: nem todo mundo gosta de praticar esporte, nem deseja ser atleta
profissional! E aqui falo de uma situação em que o atleta ainda não ganha nada
para jogar. Diferente de um time juvenil em que os atletas já ganham muito mais
do que muitos profissionais que passaram grande parte de suas vidas estudando
para o exercício de uma função. Não sou contra uma boa remuneração para alguém
que se dedica a fazer bem-feito o que escolheu para ser sua profissão. Fico sim
indignada com aqueles que diante do ganho certo acomodam-se, escondem-se de sua
obrigação e deixam no ar a justificativa de que “meu contrato me protege”.
E se
eles são para a sociedade um ideal de identidade para muitos jovens não atletas
imaginem o que isso representa para tantos. Essa postura também dificulta a
vida daqueles que vivem do esporte, reforçando uma representação social de que
atleta é burro, mal instruído e vagabundo. E, pior, que a vida que ele leva é
fácil, afinal é apenas jogar bola, viajar, conviver com celebridades e
desfrutar do que há de melhor mundo afora. Quantos anos mais vamos ter que
trabalhar pra formar atletas competentes não apenas do ponto de vista motor,
mas também cognitivo, afetivo, moral e da cidadania? Dá pra imaginar alguém ser
“obrigado a jogar bola e ser bem remunerado para isso”?
Nessa cabeça
limitada por uma história construída no século XX, não. Vou ter que alterar, em
breve, um recurso didático que uso em aula, para provocar debate, em que
pergunto se ali alguém conhece alguém que é bancário, mas que não gosta de ser
bancário. A resposta é sempre afirmativa. E então derivo para a engenharia, a
administração, a psicologia, a química, até chegar ao esporte. Quase nunca
encontro quem afirme conhecer um atleta profissional que seja insatisfeito com
o que faz.
Mas, diante das transformações que o esporte vem sofrendo isso já
não é tão raro assim. Afinal, desde que o esporte se tornou uma profissão e uma
possibilidade de ascensão social, muitos pais e responsáveis passaram a ver
seus filhos como commodities. E nesse jogo, vale qualquer investimento
para a valorização do produto. Eles só não sabem que os filhos, temerosos de
perderem o amor familiar vão então em busca da realização do sonho de seus
genitores, mesmo que isso represente a sua própria infelicidade. Não bastasse
isso a sedução exercida por um ambiente construído para levar a uma atividade
glamorosa ajuda a disfarçar a insatisfação ou a frustração de planos outros,
afinal, estar no esporte significa ser competitivo, viril, características
ultra-modernas.
Espero poder
continuar a trabalhar com profissionais que enxergam essas discrepâncias a
paradoxos e buscam estratégias para colocar “o bonde nos trilhos”, respeitando
os sonhos de jovens que têm planos para o futuro, vontade de construir coisas e
contribuir de alguma forma para deixar sua marca no mundo. Espero também
encontrar mais pais que escutem de fato as demandas dos filhos e contribuam
para o desenvolvimento de seus sonhos, sejam eles relacionados ao esporte ou
não. E assim teremos, certamente, mens sana in corpore sano!
Sobre Katia Rubio:
Professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da
Universidade de São Paulo, orientadora nos programas de Pós-graduação da
EEFE-USP e FE-USP. Escreveu e organizou 15 livros acadêmicos nos últimos 10 anos
na área de Psicologia do Esporte e Estudos Olímpicos abordando os temas
psicologia do esporte, estudos olímpicos, psicologia social do esporte,
psicologia do esporte aplicada e esporte e cultura. É também bacharel em
Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero (1983) e Psicologia
na PUC-SP (1995). Coordena
atualmente o Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano da EEFE-USP e
foi presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte entre os anos
de 2005 a 2009.
Puxa André. Como ficou linda a diagramação que vc fez. Obrigada por tornar meu trabalho tão atrativo!
ResponderExcluirKatia
Apenas um toque na sua obra de arte. É o mínimo q. posso fazer.
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