Eles ganharam uma importância no atual futebol mundial que
talvez nunca tenham sonhado na vida. Dão coletivas, como jogadores. Ganham
salários milionários. Tornaram-se donos da verdade em clubes importantes
espalhados pelos quatro cantos do planeta. Mas o conto inédito do escritor
Cláudio Lovato Filho que você vai ler agora retrata cenários invisíveis do competitivo futebol mundial, ou seja, o das relações
humanas entre técnicos, jogadores e dirigentes.
Solitário
O técnico de futebol é um solitário, meu padrinho Ivan Miguel
sempre dizia. Ele nunca foi técnico, nunca foi jogador. Meu padrinho Ivan
Miguel era contador. Um torcedor de arquibancada. Estou
pensando nisso agora, nas palavras do meu padrinho, porque fiquei sabendo pelo
Altair, meu auxiliar, que por sua vez ficou sabendo pelo Cidão, preparador de
goleiros, que os jogadores estão querendo me derrubar. O Richard e o Neozinho
estão liderando a coisa.
O Richard
é o meu jogador mais experiente, já disputou duas Copas, botei ele na reserva.
O Neozinho, bom, este é o que se pode chamar de traíra. Eu o trouxe lá do fim
do mundo, de um clube que, na melhor das hipóteses, vai ficar lutando
eternamente para se manter na terceira divisão nacional. Trouxe o cara para cá,
há mais de dois anos, o garoto foi recebido como um reizinho por minha causa,
deram a ele todas as condições de mostrar o futebol que tem, e agora está aí,
querendo me passar a rasteira. Quantas vezes o moleque veio me abraçar na beira
do campo depois de fazer um gol... O pessoal aqui do clube, de sacanagem, dizia
que ela era meu filho.
Mas o
técnico de futebol é um solitário, como dizia o meu padrinho Ivan Miguel. E
olhe que ele nunca entrou num vestiário, nunca ouviu uma preleção, nem esteve em concentração. Não
tem jeito, eu sei: quando os jogadores querem derrubar o técnico, eles derrubam
mesmo. É só questão de tempo. Estou sabendo que tem jogador que até gosta de
mim, que não vê problema na minha permanência, mas estes, como sempre acontece
quando o movimento está encorpado, quando o processo é comandado pelos caras
certos, os que têm a tal da “ascendência sobre o grupo”, calam o bico, fingem
que não é com eles, consentem com tudo.
O
presidente é um covarde que quer me demitir faz tempo. Só estou aqui até agora
porque o diretor de futebol, responsável pela minha vinda para o clube,
conseguiu segurar as pontas. Esse diretor, que é um sujeito decente (sou
suspeito para falar, claro), também acontece de ser um tremendo conhecedor do
futebol, coisa que esse canalha desse presidente não é nem nunca vai ser. O
diretor sabe que o time é limitado, sabe que o fato de estarmos hoje na décima
quarta colocação na tabela é um pequeno milagre, porque já era para estarmos
matematicamente rebaixados nessa altura do campeonato, com o time que nós
temos. Mas não adianta, não tem jeito. Esse presidente quer me usar como bode
expiatório, quer jogar para a torcida. Um filho da puta.
É a
primeira vez que passo por isso. Depois de 15 anos como técnico, oito clubes, cinco
estados, enfim chegou a hora. E por quê?, eu meu pergunto. Errei onde? Não sei.
Nunca fui de dar tapinha nas costas de jogador, nem de assar churrasco para
eles. Mas também sempre deixei claro que não gosto de bajulação, nunca menti
para jogador, nunca critiquei ninguém em público. Quando um
deles perde a posição, eu mesmo chamo o cara para uma conversa olho no olho e
informo a minha decisão. O jogador é o primeiro a ficar sabendo, e fica sabendo
por mim, o treinador. Assumo os meus erros, não jogo a culpa pelos maus
resultados em ninguém, sempre fui assim, quem me conhece sabe que tudo isso é
verdade.
Então é
isso. Um jogador vaidoso, que viu na perda da posição um insulto pessoal, uma
tentativa de humilhação, partiu para o revide. Em momento nenhum fez
autocrítica. O Richard não estava jogando nada havia pelo menos um ano. Porra
nenhuma. Está acima do peso, é uma caricatura do centroavante de tempos atrás,
hoje não consegue nem segurar a bola lá frente quando o time precisa ganhar
tempo e fôlego num jogo difícil.
E tem o
covarde que os conselheiros desse clube tradicional e de bela história elegeram
para a Presidência. Esse tipo de tumor só é extirpado quando o clube é
rebaixado, quando a torcida vive um momento de completa vergonha e a
instituição é achincalhada por todos. Aí o cara esse vira persona non grata,
fica proscrito, a foto dele nem vai para a galeria de ex-presidentes.
Mas o que
mais me magoa mesmo, no fim das contas, é o envolvimento do Neozinho nessa
sacanagem contra mim. O que será que o Richard botou na cabeça dele? Puta que
pariu.
Você veja.
A pessoa tenta levar a vida da melhor forma, da maneira mais correta possível,
trabalha direito, se aprimora, não se afasta da ética em momento nenhum, é
justo com quem está embaixo, respeitoso com quem está em cima, e então aparece
um mau-caráter para complicar a sua vida.
Olha aí o
telefone tocando. Para mim? Quem é? O diretor de futebol? Atendo, claro.
Sujeito muito decente, me trouxe para cá, segurou as pontas até onde deu. Boa
gente, é do ramo. Passo aí já – é o que eu digo quando ele pergunta se eu podia
dar uma chegada na sala dele. Lógico que eu já sei qual vai ser o assunto da
conversa. E como ele é um sujeito direito, e como sempre me tratou com respeito
e até com admiração, eu vou facilitar a coisa para ele, vou chegar dizendo logo
que já sei do que se trata, que ele não precisa se preocupar, que eu já estava
preparado, que foi um prazer ter trabalhado com ele etc e tal. E, depois disso,
talvez me aposentar seja a única coisa sensata que me reste fazer.
Mas talvez
não seja nada disso. Pode ser que eu chegue lá e ele me diga que convenceu o
presidente a afastar o Richard e o Neozinho do grupo e me manter no cargo. Vou
caminhando do vestiário à sala da Diretoria de Futebol pensando nisso. E uma
nesga de esperança se abre no meu peito. É porque, além de solitário, todo
técnico de futebol, no fundo, é um otimista, mas isso não foi o meu padrinho
Ivan Miguel quem disse.
Sobre o autor:
Cláudio Lovato Filho
nasceu em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 1965. Ainda na infância,
mudou-se com a família para Porto Alegre, onde, em 1988, formou-se em
Jornalismo. Iniciou a carreira em jornais de Santa Catarina, nos quais foi
repórter e editor. Radicado no Rio de Janeiro há 15 anos, atua hoje na área de
comunicação empresarial. Ele também mantém o blog http://claudiolovato.wordpress.com/.
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