Na série sobre o centenário de Nelson Rodrigues, uma dica de leitura
obrigatória para aqueles que querem conhecer melhor a prosa do Nelson cronista
esportivo. Em 2007, a editora Agir lançou “O berro impresso das manchetes”, uma
coletânea das crônicas escritas por Nelson Rodrigues para a revista Manchete
entre os anos de 1955 e 1959.
Destacamos abaixo uma delas, que mostra bem o olhar de Nelson Rodrigues
sobre os diversos personagens e cenários do futebol brasileiro. Quem poderia
melhor do que Nelson descrever a mania do torcedor e do jogador brasileiro de
xingar e falar palavrões a torto e a direita, em casa, na frente da televisão,
dentro dos gramados ou nas arquibancadas dos estádios?
O berro impresso das manchetes
Sinopse (da editora):
O homem que imortalizou o Fla X Flu escreveu também sobre outras
modalidades esportivas: remo, boxe, alpinismo... Nelson Rodrigues cuidou das
modalidades mais diferentes e conseguiu, de igual maneira, retratar o quadro
épico nas glórias e derrotas de cada uma. Mais do que a aridez dos resultados,
o que interessava ao cronista eram a atmosfera, os incidentes e os episódios
que envolviam os atletas dentro e fora do palco de competição. Um gol de placa
da crônica esportiva nacional.
Fonte:
Bocage no futebol
Quando eu tinha meus cinco,
meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era tido e havido
como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça:
– não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia
cercado de conselhos, por todos os lados: – “Não brinca com Fulano, que ele diz
nome feio!”.
E o Fulano assumia, aos meus
olhos, as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas
o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja
estava com a razão. Sim, amigos: – cada nome feio que a vida extrai de nós é um
estímulo vital irresistível. Por exemplo: – os nautas camonianos. Sem uma
sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro
Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os
virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.
Mas, se nas relações humanas
em geral, o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que dizer do
futebol? Eis a verdade: – retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será
possível. Como jogar ou torcer se não podemos xingar alguém? O craque ou o
torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o
verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: – está para
nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro
não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais
palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo,
matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o
estão: – o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco
insuperável.
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Jaguaré |
Exagero? Nem tanto, nem tanto.
A propósito, vou citar aqui o caso de Jaguaré. No seu tempo, os clubes não
tinham Departamento Médico e um jogador podia andar com a boca em petição de
miséria, desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: – não tinha
dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo,
permanente e terrível. E acontece o seguinte: – a época de Jaguaré coincidiu
com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol. O sujeito que
tinha pra a média, para o pão com manteiga, podia se considerar um Rockefeller,
de tanga, mas Rockefeller.
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Jaguaré e Fausto. |
Até que, um dia, apareceu por
aqui o emissário de um clube estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré
propostas dignas de um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa inexpugnável.
Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou cedendo. Andou pela Espanha e até
por Paris. Mas era outro, como homem e como craque. Como jogar sem a
pornografia luso-brasileira? Sem as expressões obscenas que dinamizam, que
transfiguram, que iluminavam os jogadores? Traduzi-las seria uma traição. E
Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos nomes feios
intransportáveis.
Finalmente, não pode mais: –
voltou correndo para o Brasil. Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda
miséria. Mas feliz, porque pode soltar, no idioma próprio, seus últimos
palavrões terrenos.
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