Um livro que começou a quebrar o preconceito de que
acadêmicos não deveriam estudar, pesquisar e escrever sobre o futebol foi feito muito tempo atrás por uma mulher. E essa mulher não era brasileira, era norte-americana.
“A loucura do futebol”, de Janet Lever é o que podemos
chamar de “clássico” na literatura esportiva brasileira. Ele é fruto da tese
“Soccer Madness: Sport and social integration in Brazil”, editado pela
Universidade de Chicago.
Traduzido e publicado em 1983, no Brasil, pela editora
Record, Janet Lever examina o futebol e os torcedores do Brasil, baseando-se em
entrevistas com diretores de clubes, treinadores, jogadores, chefes de torcidas
organizadas e cronistas esportivos. Ela esteve três vezes no Brasil, entre os anos de 1969 e 1970.
Coincidência ou não, foi na década de 1980 que a
universidade brasileira acolheu o futebol como objeto de estudo. Um ano antes
de Janet Lever lançar por aqui o seu “A loucura do futebol”, quatro
antropólogos brasileiros, Roberto DaMatta, Luiz Felipe Baêta Neves, Arno
Vogel e Simoni Lahud, escreveram outro livro
importantíssimo: “Universo do Futebol” (Editora Pinakotheke), com ensaios
desses quatro pesquisadores.
Mas vamos ao estudo de Janet Lever. Uma obra de
referência para pesquisadores do esporte número um dos brasileiros.
"Na medida em que a preocupação
primária do sociólogo é o vínculo social e tendo em vista que o esporte está na
raiz da vida social na sociedade moderna, então uma tarefa central para um
sociólogo deve ser descrever a natureza do esporte como uma grande instituição
cultural e analisar sua importância. Não apenas os atletas, mas também todos os
envolvidos na regulamentação, administração, promoção e audiência de um evento
esportivo devem ser incluídos na amplitude da investigação.
(...)
Este livro focaliza o esporte
mais popular do mundo, o futebol, e o país em que é mais popular, o Brasil,
para mostrar como o esporte serve como uma fonte estrutural e cultural de
integração social. Paradoxalmente, essa integração é alcançada pelo
aprofundamento das divisões dentro da sociedade. Usarei o caso do Brasil para
especificar como esse feito de dividir-e-integrar é realizado em todos os
níveis, das relações interpessoais às internacionais. A capacidade do esporte
de criar ordem social, ao mesmo tempo que preserva a diversidade cultural,
significa que os sentimentos primordiais são capazes de promover ao invés de
impedir os objetivos do desenvolvimento nacional. As conseqüências políticas e
econômicas do esporte, portanto, são elementos cruciais da história.
Os materiais para este livro
vieram de uma variedade de fontes. Durante minhas quatro viagens ao Brasil,
entre 1967 e 1973, assisti de 50 a 60 partidas de futebol. A maioria das
pessoas que conheci informalmente, do caixeiro de armazém às elites comerciais
e políticas, sempre estava disposta a “falar de futebol” comigo. Nas duas
primeiras visitas, minhas entrevistas formais foram com atletas profissionais e
minhas informações sobre eles foram complementadas e atualizadas nas visitas
subseqüentes. Nas últimas viagens, concentrei as entrevistas menos nos atletas
e mais nos dirigentes de ligas, comentaristas de rádio e televisão e líderes de
torcidas. Nas quatro viagens, estudei materiais de arquivos, inclusive reportagens
de jornais, registros de público, arquivos de sócios de clubes e relatórios
financeiros.
Essas técnicas proporcionaram uma
rica combinação de dados descritivos e numéricos, que são extremamente úteis
para a compreensão do lugar central do futebol na vida brasileira. Conhecedores
do cenário esportivo, assim como outras pessoas com quem conversei,
ofereceram-me visões perceptivas da loucura do futebol no Brasil. As percepções
deles, juntamente com as teorias “de poltrona” da literatura acadêmica e as pressuposições
de puro bom senso sobre o esporte, ajudaram-me a desenvolver teorias sobre a
torcida. Depois de testar questões formuladas para confirmar ou rejeitas essas
hipóteses, entrevistei 200 homens das classes trabalhadoras do Rio de Janeiro
durante o estágio final da minha pesquisa. Somente ao reunir informações
sistemáticas dos próprios homens é que pude começar a descobrir como o esporte
afeta o tipo, freqüência e qualidade da interação pessoal na cidade; quantos e
que tipo de homens dão ao esporte um lugar realmente proeminente em suas
rotinas semanais; e como os atletas e outras personalidades públicas se
comparam como símbolos de cultura para esses homens.
(...)
As pessoas são animais sociais. O
instinto tribal – a necessidade de pertencer a alguma coisa que é maior do que
nós – é evidente em todas as sociedades. Nas sociedades avançadas, os esportes
coletivos são recipientes perfeitos para a lealdade humana. Os torcedores se
identificam com seus times e com outros torcedores que partilham a mesma
devoção. As ameaças de times adversários despertam o nosso senso de que somos
necessários, o que por sua vez nos dá a garantia de que pertencemos. Encarando
o time “tribo” como nosso, ficamos orgulhosos quando vence, envergonhados
quando perde, esperançosos de que voltará a vencer.
O esporte ajuda a relacionar as
pessoas nas complexas sociedades modernas. O caso do futebol no Brasil mostra
que o esporte liga pessoas, grupos, cidades e regiões num único sistema
nacional, assim como liga as nações num único sistema mundial. Através dos
círculos cada vez mais amplos de competição, há um renovado senso de
coletividade.
Proporcionando uma estrutura para
a lealdade humana, das raízes a níveis internacionais, o futebol consolida a
cidadania do indivíduo em diversos grupos ao mesmo tempo. Os homens do meu
estudo sorriram ao recordarem os nomes de veteranos da Copa do Mundo e ao
identificarem fotografias dos ídolos locais do futebol; o simples ato de
reconhecerem símbolos comuns fez com que se sentissem “por dentro”. Torcer por
um time do Rio lembra a esses homens de seu orgulho cívico; torcer pela seleção
brasileira lhes proporciona a ocasião para sentimento patriótico, cantar o hino
nacional e acenar com bandeiras. Reconhecer os nomes de clubes e ídolos
estrangeiros – Bobby Charlton da Inglaterra, Eusébio de Portugal, Beckenbauer
da Alemanha, Chinaglia da Itália e Cruyff da Holanda – faz com que os
torcedores se sintam internacionais.
(...)
Acompanhar o futebol no Brasil
não é um substitutivo das relações primárias para os forasteiros alienados; em
vez disso, é o foco principal da vida de lazer para homens que pertencem. As
pessoas bem integradas acompanham o futebol porque é uma parte de seu ambiente
social e acompanhar o futebol lhes proporciona um conhecimento de eventos e
personagens de importância, o que aprofunda seu senso de integração e confirma
a posição de estar “por dentro”.
Os dados da minha pesquisa
demonstram que um homem socialmente mais relacionado tem maior probabilidade de
colher os benefícios de integração ao ato de torcer. Em outras palavras, o
senso de ligação à sociedade que um indivíduo sente é variável e pode ser
conceituado como um círculo vicioso. Os de fora permanecem de fora, enquanto os
que estão por dentro se encontram em posição de serem atraídos para todas as
partes centrais da vida social.
Ao nos deslocarmos de indivíduos
para o nível de grupos, regiões ou sociedade, os benefícios de integração que
possam ser colhidos do conflito esportivo tornam-se dependentes da extensão do
conflito real entre oponentes. Goffmann sugere que as competições mais
absorventes são as que estão mais próximas da realidade, mas não demais. Onde
as sociedades são relativamente homogêneas ou harmoniosas, a competição
simbólica no esporte é minimizada e somente a qualidade do jogo determina o
valor do espetáculo. Onde as sociedades tem divisões internas numerosas ou
internas, o conflito dramatizado é tão real que o espetáculo é acentuado, mas
apenas até o ponto em que as hostilidades são tão intensas que jogar juntos se
torna impossível.
O conflito ritualizado pode
reduzir as hostilidades, concedendo-lhes livre expressão. Ou pode estimulá-las.
Na Irlanda do Norte, onde os times representam tipicamente católicos ou
protestantes, as disposições de jogo refletem as hostilidades beligerantes
entre as duas facções religiosas. Os times protestantes recusam-se a jogar em
estádios católicos e os torcedores católicos devem entrar nos estádios
protestantes sob vigilância policial. É necessária a presença de um grande
contingente da força policial da cidade, equipada com arma contra distúrbios e
cachorros treinados, e os dois grupos de torcedores ficam separados por arame
farpado. A distância entre a guerra falsa e a guerra real não é grande; onde as
hostilidades são profundas, o conflito ritual pode facilmente perder as suas
características de jogo e servir como um elemento catalisador para motins e
distúrbios.
Os jogos de futebol no Brasil são
emocionantes porque expressam fortes lealdades primordiais. Os conflitos
simbólicos representam importantes divisões sociais, mas os antagonismos não
são profundos o bastante para impedir a rivalidade amistosa. Por exemplo, a
discriminação racial foi comprovada e as divisões raciais são reais, mas os
brasileiros possuem o maior índice de miscigenação do mundo. As relações
raciais no Brasil são de tal forma que pretos, mulatos e brancos convivem sem o
distanciamento físico que se encontra nos Estados Unidos. Embora os contrastes
de classe social sejam mantidos e esteja-se alargando o abismo entre ricos e
pobres, o Brasil possui uma história paternalista e o espírito de noblesse oblige ainda unifica as classes
superiores e inferiores. Os grupos raciais, de classe e étnicos estão
divididos, mas uma medida de coesão social lhes permite jogar juntos e
construir um senso ainda maior de interesse partilhado.
A considerar a primeira postagem do ano, vai ser mesmo um feliz ano novo...
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