Hoje, no segundo
artigo da série especial sobre o centenário do dramaturgo e escritor Nelson
Rodrigues, uma crônica publicada em O
Globo, no dia 9 de novembro de 1963, sobre o jogo Fluminense 4 a 0 contra o
Campo Grande. Quer dizer, o jogo em si, tem quase valor nenhum, como sempre, na
prosa de Nelson Rodrigues. Na verdade, Nelson quer mesmo é falar de um grande
amigo, ou melhor, da verdadeira “obsessão” que sentia pelo escritor mineiro
Otto Lara Resende. Antes de começar, vale explicar o significado da expressão
“bei” tão utilizada por Nelson Rodrigues em sua história: “Governador
de província muçulmana. Título do soberano da Tunísia”.
E a última lembrança: não se esqueça que em agosto, acontece o evento “Literatura
na Arquibancada 2012 – O centenário de Nelson Rodrigues”. Aguarde.
Um Fluminense tão Flaubert
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Eça de Queirós |
Amigos, no tempo de Eça de
Queirós, quando o articulista estava sem assunto, tinha uma solução genial, que
era a seguinte: - xingava o bei de Túnis. Em Túnis há sempre um bei, e é doce
descompor alguém com a prévia e linda certeza da impunidade. Era uma delícia
para o autor de Os Maias xingar um
desconhecido ilustre.
Numa das vezes o bei protestou. Ao descrever fisicamente
a vítima, Eça chamou o bei de “sórdido e obeso”.
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Otto Lara Resende |
Possivelmente a importante
autoridade não seria uma coisa nem outra. Ou talvez fosse magro, lívido e
hierático. Mas o que eu queria dizer é que, como todo cronista, eu tenho o meu
bei de Túnis.
Chama-se Otto Lara Resende e trabalha ali na Procuradoria do
Estado. Sendo esta uma coluna de futebol, por que a citação freqüente e mesmo
obsessiva de um homem que jamais deu uma botinada, jamais bateu um corner ou um
tiro de meta?
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Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende. |
O leitor dirá: - “É uma obessão”.
Ao que eu responderei: - “É uma obsessão”. Se eu pudesse, escreveria todo santo
dia sobre o Otto. A princípio ele foi, estritamente, o meu bei de Túnis. Hoje é
algo mais. Faz-me falta não citá-lo nas minhas crônicas. Sinto-me um frustrado
e um vencido quando não uso o seu nome uma única e escassa vez. E o
interessante é que também o leitor está viciado no Otto e tem saudades dos seus
feitos, da sua figura, das suas piadas.
Hoje, porém, vou falar do Otto a
propósito do Fluminense. Pode parecer que uma coisa não tem nenhuma relação com
a outra. Mas tem. E explico. O Otto é uma coisa que não sei, francamente, não
sei, se compromete ou se consagra um estilista. Ninguém mais divino torturado.
Por vezes uma frase lhe custa arrancos de cachorro atropelado. Outro dia o
Hélio Pellegrino soprou-lhe a sugestão: “Não seja tão Flaubert de Salambô!”.
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Nelson Rodrigues e o amigo Otto Lara Resende. |
Por exemplo: - nas refeições o
personagem do Otto “senta-se à mesa”, sempre e inexoravelmente “à mesa”. E
vamos e venhamos: - sempre que, numa obra de ficção, o personagem senta-se com
a classe referida, não é mais possível obra-prima, não é mais possível Ana Karenina. Ao passo que,
pessoalmente, ele arrebata porque, no bate-papo, não há classe, não há
Flaubert, não há Salambô, não há
nada.
Outro dia o Otto sentou-se com o
Armando Nogueira. Três horas da manhã. E o escritor mineiro brilhou como uma
Duse aos dezessete anos. Durante 45 minutos ele provou, por A mais B, que no
Brasil o golpe é uma impossibilidade total. Convenceu o Armando. Em seguida,
passou a demonstrar a verdade inversa, ou seja: - que, no Brasil, o golpe é
iminente, inevitável e necessário. Estava sendo ali um Sócrates sem alpercata.
Agora, a relação do Otto com o
Fluminense. Domingo passado, durante os primeiros vinte minutos, o Fluminense
foi um Otto, foi um estilista. Mas no futebol, como na literatura, convém não
caprichar demais. Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. Tudo
certo, exato, irretocável, como a redação do Otto. No meu canto, eu via a hora
em que perderíamos mais um ponto fatal. E vem a grande verdade: - a obra-prima,
no futebol e na arte, tem de ser imperfeita. A partir do momento em que o
Fluminense deixou de ser tão estilista, tão Flaubert, os gols começaram a
jorrar aos borbotões.
Para saber mais sobre Otto Lara
Resende, o personagem de Nelson Rodrigues, vale a pena acessar o link http://www.releituras.com/olresende_bio.asp
e entender porque o amigo era uma verdadeira “obsessão” em sua vida. Para
compreender melhor ainda, basta ler abaixo o verso de Otto:
"Uma criança vê o que um adulto não vê. Tem olhos
atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela
primeira vez o que de tão visto ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio
filho. Marido que nunca viu a própria mulher. Isso exige às pampas.
Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos.
É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença".
É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença".
(Vista cansada).
Para conhecer a biografia de
Nelson Rodrigues, acessar:
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