Na próxima semana, no dia 20 de
janeiro, o eterno ídolo do futebol brasileiro, Garrincha, nos deixava.
Terminava para o homem simples, Manoel dos Santos, uma jornada feita
de fama e tragédia. O alcoolismo acabou devastando a vida de mais um
brasileiro.
Garrincha morreu quando tinha
apenas 49 anos, em 1983. A partir de hoje, Literatura na Arquibancada
apresentará uma pequena série de artigos, crônicas e poemas sobre o jogador que
era “a alegria do povo”.
Para iniciar essa série, uma
entrevista exclusiva com o biógrafo de Mané Garrincha, o escritor e jornalista
Ruy Castro, autor de um livro polêmico, mas fundamental para que muitos
enxergassem o drama de uma doença chamada alcoolismo: “Estrela Solitária – Um brasileiro
chamado Garrincha” (Companhia das Letras, 1995).
O livro, lançado em 1995, gerou
tanta polêmica que acabou proibido de ser vendido por um ano, devido a um
processo movido por “advogados oportunistas das filhas de Garrincha”, como
afirma Ruy Castro. Nesse bate-papo, conheceremos também um pouco mais sobre a
vida deste craque da literatura brasileira, Ruy Castro.
Literatura na Arquibancada:
Quando e por que começou a escrever sobre futebol?
Ruy Castro:
Sempre
adorei futebol, mas raramente escrevi a respeito – no máximo, algumas
colaborações no “Correio da Manhã” e no “Pasquim”, em fins dos anos 60. Mil
anos depois, na década de 90, quando comecei a trabalhar com o universo de
Nelson Rodrigues, resolvi me dar a liberdade de tratar do assunto.
Fiz
os livros do Nelson, “À sombra das chuteiras imortais” e “A pátria em
chuteiras”, e resolvi mergulhar no “Estrela solitária”, que é a biografia do
Garrincha. Mas nunca quis ser um profissional do gênero, assim como sempre
recusei propostas para ser crítico de cinema, de música popular, de literatura
etc. Preferi continuar torcedor e, digamos, diletante.
L.A:
Como surgiu o projeto do livro sobre Garrincha?
R.C:
A
idéia inicial era fazer um livro sobre alcoolismo, não sobre futebol.
Naturalmente, não seria um ensaio, mas uma narrativa. E aí a figura do Garrincha
surgiu espontaneamente como fio narrador.
Era
perfeito, porque eu não queria biografar um derrotado, mas um vitorioso – um
homem unanimemente amado, que foi destruído pela bebida. Além disso, me daria a
oportunidade de mergulhar no futebol, principalmente o de uma década que
acompanhei bem: a de 50.
L.A:
Como foi o processo de produção dessa obra? Usou a mesma rotina de outros
livros? Aliás, como é a rotina de seu processo de produção?
R.C:
Mesma
rotina: primeiro, aprender tudo que todo mundo sabia sobre o assunto; depois,
descobrir o que ninguém sabia. O grosso do trabalho, 60%, consistiu em
conversar com pessoas que conviveram com Garrincha, dentro e fora do futebol.
L.A:
Quem era Garrincha?
R.C:
Um
gênio, claro, destruído por uma doença terrível.
L.A:
Como biógrafo de Garrincha, qual ou quais os momentos mais marcantes da
vida dele?
R.C:
São
inúmeros, e não tenho distanciamento para definir isto. É melhor que cada
leitor de “Estrela solitária” escolha.
L.A:
Várias críticas sobre “Estrela Solitária” mencionam a forma “dura” de
como você tratou o problema do alcoolismo de Garrincha. Por outro lado, em
várias entrevistas você afirma que esse tema, um dos principais na vida dele (e
de muitos jogadores), não foi devidamente discutido. O que restou desse assunto?
R.C:
Infelizmente,
o livro não chegou nem a ser “criticado” - no Brasil, não resenham as
biografias, mas os biografados. E de que maneira queriam que eu retratasse o
alcoolismo do Garrincha? Com a visão romântica e falsa com que tantos se
ocuparam dele enquanto ele estava no auge -e depois o abandonaram quando ele
decaiu? No Brasil, as pessoas têm vergonha do alcoolismo, acham que é um
problema moral. Garrincha, no fundo, morreu disso – dessa ignorância
brasileira.
L.A:
Qual foi o problema que você teve com a família de Garrincha? Por que a
obra acabou proibida de ser vendida no mercado? E como ficou esse processo?
R.C:
Não
tive nenhum problema com a família do Garrincha, mas com os advogados
oportunistas que exploram as filhas dele. O livro passou um ano proibido, em
1996.
Depois foi liberado, mas o processo se arrastou por 11 anos. Só terminou
agora há pouco, em, 2007.
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Garrincha e as filhas. |
L.A:
Atribuem a você a frase: “Do
jeito que está, o único biografado possível terá de ser solteirão, filho único,
órfão, estéril e broxa". É por isso que você nunca mais escreveu
nenhuma biografia sobre outro jogador? Aliás, teve propostas?
R.C:
Não, não escrevi mais sobre jogadores, nem
escreverei, porque não gosto de repetir temas. Escrevi um livro sobre Bossa
Nova [“Chega de saudade”], outro sobre um teatrólogo [“O anjo pornográfico”,
sobre um jogador [“Estrela solitária”], sobre um bairro do Rio [“Ela é
carioca”, sobre Ipanema] e sobre uma cantora do passado [“Carmen – Uma
biografia”, sobre Carmen Miranda]. Não teria sentido fazer outro jogador.
Propostas, na área do esporte, tive da família Gracie, da família Senna e
outras. Mas não aceito encomendas.
L.A:
Como analisa o atual momento da literatura esportiva (e o mercado também)
no Brasil?
R.C:
Muito
bom. Toda hora sai coisa nova sobre futebol. Quando fiz o “Estrela solitária”,
ainda havia o tabu de que quem gosta de livros não gosta de futebol e
vice-versa. Fico contente de ter ajudado a derrubá-lo.
L.A:
Qual o livro sobre o tema futebol que você gostaria de escrever (exceto
biografias)?
R.C:
Uma
versão definitiva de meu livro “O vermelho e o negro – Pequena grande história
do Flamengo”. Aliás, já escrevi. Sai agora em abril, pela Companhia das Letras.
L.A:
Quais são os livros sobre futebol que você recomenda?
R.C:
Os
do Nelson Rodrigues e o “O sapo de Arubinha”, do Mario Filho, que saíram pela
Companhia das Letras. Mas eles não são fáceis de encontrar...
Em
uma das perguntas, Ruy Castro diz que “não tem distanciamento para citar
momentos marcantes na vida de Garrincha” e sugere a leitura de seu livro “Estrela
Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha” para que os leitores os encontrem.
Literatura
na Arquibancada destaca então o início de um capítulo (“1966-1967 Acabado”) em
que o autor revela o estágio do alcoolismo em que Mané Garrincha se encontrava,
já na década de 1960, e que acabaria por levá-lo definitivamente desta vida.
Foi o momento em que Mané Garrincha chegou a São Paulo para vestir a camisa 7
do Corinthians. Ao lado da companheira, a cantora Elza Soares, todos imaginavam
que Mané havia mudado, mas a realidade foi bem diferente:
“Na
primeira semana de Garrincha e Elza no apartamento em São Paulo, seus vizinhos
ameaçaram chamar a polícia. Nunca tinham visto – aliás, ouvido – tanto alvoroço
noturno no sacrossanto recesso de um
lar. Os sons se estendiam pela madrugada, com intervalos de quinze minutos para
respiração. Ninguém podia fazer
aquilo tantas vezes numa noite e com o mesmo entusiasmo. Mas Garrincha talvez
estivesse sendo didático para com seus vizinhos. O sexo, para ele, era tão
esportivo e alegre quanto o futebol – nada de soturno ou sorumbático, como para
muitos casais.
Por
isso, ou por serem Garrincha e Elza Soares, eles se sentiram discriminados no
edifício da rua Maranhão. Os vizinhos não falavam com eles, nem os
cumprimentavam no elevador. O porteiro não tinha a menor pressa em lhes abrir a
porta. A situação só melhorou depois que dona Lilian, influente moradora do
prédio, aproximou-os de outros casais. E só então estes se deixaram cativar.
Alguns vizinhos foram até convidados para a baita festa, cravejada de artistas,
com que inauguraram o apartamento e cuja grande atração foi Wilson Simonal,
então no auge, cantando “Balanço Zona Sul”, de Tito Madi.
Mas
Garrincha e Elza não paravam muito em São Paulo. Nos primeiros meses tiveram de
voltar várias vezes ao Rio. Elza viajava toda semana para outros estados por
causa dos shows. Para cuidar de Sara, contava com Licanor, garçom do hotel
Danúbio, que fazia horas extras para ela como baby-sitter.
Se
pudesse, Elza não ficaria um minuto fora do apartamento – para controlar
Garrincha. O Corinthians não sabia, mas seu alcoolismo se acelerara no último
ano. Em Ipanema, Garrincha não estava se limitando a beber em casa, onde Elza o
vigiava. Várias vezes, ao acordar de manhã, ela apalpava o travesseiro ao seu
lado e já não o encontrava na cama.
Garrincha
saíra de fininho e fora para o bar Bofetada, na rua Farme de Amoedo, entre
Visconde de Pirajá e Barão da Torre. O Bofetada era famoso pelo peixe frito e
pela batida de limão. Garrincha podia ser visto sozinho, no balcão, tomando um
copázio de batida às oito da manhã. Parou de ir ao Bofetada porque até mesmo
àquela hora o bar já era freqüentado por pessoas que conhecia, como Lúcio
Rangel e Grande Otelo. E, embora nenhum deles estivesse ali para tomar
Ovomaltine,, Garrincha não gostava de que o vissem bebendo em público. Então
mudou-se para outro botequim menos nobre na vizinhança.
Elza
esperava que, em São Paulo, jogando por um novo clube, Garrincha recuperasse o
entusiasmo pelo futebol e parasse de beber. Ou que, pelo menos, reduzisse a
cota. No começo Garrincha realmente se entusiasmou. Mas, já então, a escalada alcoólica
era irreversível – independia de sua força
de vontade. Seus amigos do Rio, mesmo familiarizados com seu apreço pelo
produto, assustavam-se ao visitá-lo em São Paulo e serem recebidos por ele com
um copo longo na mão, de coquetel, com cachaça até a boca. Um desses amigos era
o seu novo advogado Sebastião Figueira, filho do professor Figueira. Diante
dessa cena só havia uma certeza: Elza estava viajando. Garrincha já não se
atrevia a beber tais quantidades em sua presença.
Para
não expô-lo a tentações, Elza baniu qualquer espécie de bebida alcoólica do
apartamento em Higienópolis e, de tempos em tempos, fazia uma busca pelos
aposentos à procura de garrafas escondidas. Não encontrava nenhuma, mas algo
lhe dizia que havia bebida na casa. E havia mesmo. Um dos reservatórios
secretos era o interior de uma cadeira-do-papai vermelha, cujo forro era
pregado com tachinhas e que ficava no quarto de Sarinha. Durante meses
Garrincha manteve ali um estoque de cachaça. Quando Elza entrava no banho ou
saía para a rua, ele despregava as tachinhas, puxava uma garrafa e tomava pelo
gargalo – porque Elza, ao voltar da rua, cheirava os copos. Em seguida, chupava
drops de hortelã para maquiar o hálito.
Certa
manhã, o repórter José Maria de Aquino foi entrevistá-lo e percebeu seu bafo.
Alertou-o:
“Começando
cedo, Mané?”
Garrincha
se traiu:
“Não
é possível! O hortelã disfarça!”
Elza
acabou descobrindo a adega nas entranhas da cadeira-do-papai, mas Garrincha
inventou outras formas de esconder bebida em casa. Na ausência dela, esvaziava
garrafas de água tônica e enchia-as com cachaça Tatuzinho. Ou, como Ruy Milland
no filme Farrapo humano, pendurava a
garrafa de pinga por um barbante no lado de fora da janela do banheiro.
Garrincha
já não estava bebendo por prazer ou diversão. Era seu organismo que passara a
exigir álcool. Começou a perceber isso quando, ao acordar com um certo tremor,
este só passava se bebesse. Daí a necessidade de ter alguma bebida em casa – e,
se não tivesse, de escapar para beber na rua.”
Fonte:
“Estrela
Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha” – Ruy Castro
(Companhia
das Letras, 1995, pgs 351-353)
Sobre
Ruy Castro:
Nasceu
em 1948. Começou como repórter em 1967, no Correio da
Manhã, do Rio, e passou por todos os grandes veículos da imprensa
carioca e paulistana. A partir de 1990, concentrou-se nos livros. Publicou,
entre muitos outros, as biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson
Rodrigues, e obras de reconstituição histórica, sobre a Bossa Nova, Ipanema e o
Flamengo. É cidadão benemérito do Rio de Janeiro.
VIVA MANÉ GARRINCHA!
ResponderExcluirCaro André,
ResponderExcluirEm 1968, eu era repórter do Jornal da Tarde (SP) e fui ao Rio cobrir um jogo do Robertão. Garrincha estava se apresentando ao Flamengo, numa de suas muitas tentivas de voltar a ser o Garrincha, e eu fui até à Gávea.
Ele não me conhecia, mas topou dar uma entrevista no apartamento onde orava com Elza Soares, na rua República do Peru.
Ele e a Elza me receberam muito bem e lógo estávamos num papo com se fôssemos velhos conhecidos.
Quando perguntei sobre os problemas de infiltrações no joelho acontecidos nos tempos do Botafogo, ele me respondeu com a conhecida simplicidade: "Deixa isso prá lá, ele são tudo gente boa".
Elza queimou:
"Neném, vai lá pra cozinha e faz um café pra nós. Deixa que eu dou a entrevista."
E lá foi ele, dócil, fazer o café.
Para ele, o mundo era cheio de gente boa.
Abraços,
Mário Marinho.