Na literatura esportiva
brasileira há um gênero ainda pouquíssimo explorado pelos autores. A Ficção
Científica Brasileira tem apenas um livro de referência, o primeiro e talvez
único deles, publicado às vésperas da Copa de 1998, na França, chamado “Outras Copas,
Outros Mundos” (Editora Ano-Luz, vários autores).
Hoje, encontrado apenas em sebos,
a obra reúne contos bem-humorados que misturam futebol e ficção científica. São
11 contos escritos por alguns dos principais autores de ficção científica
brasileiros contemporâneos. Uma antologia memorável, surpreendente e inusitada
sobre a temática da ficção científica brasileira feita até hoje. De quebra, fãs
do ex-treinador da seleção brasileira, Telê Santana, poderão se deliciar com o
prefácio assinado pelo falecido treinador.
Para
resgatar o conteúdo dessa obra, Literatura na Arquibancada resgata parte do
texto do especialista em Ficção Científica Brasileira, Roberto de Sousa Causo, publicado em junho de 2006, na página do Terra
Magazine (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1043995-EI6622,00.html
):
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Ivan Carlos Regina (direita), autor do Manifesto Antropofágico da FC Brasileira. |
“A tentativa da FC brasileira de
encarar o tema partiu de Marcello Branco, editor da antologia Outras Copas,
Outros Mundos, seguindo sugestão de Ivan Carlos Regina, autor do
"Manifesto Antropofágico da FC Brasileira". Assim como eu, Branco fez
parte do Movimento Antropofágico da FCB lançado por Regina, e para ele o
escritor brasileiro de FC não deve temer aquilo que o estrangeiro percebe como
estereótipos nacionais do Brasil.
O futebol como expressão cultural
popular se confunde com outros discursos que falam de uma singularidade
brasileira - a mistura de raças, o sincretismo, a antropofagia cultural. É
interessante especular que, tanto quanto esses outros discursos, aquele em
torno do futebol fala de um homem especial, de um brasileiro que realizou ou
que é capaz de coisas que o distingue dos outros - o craque, o artista
da bola.
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Fábio Fernandes. |
É justo então que a antologia abra com
um conto que trata justamente de uma espécie alienígena que, tão encantada com
o futebol brasileiro, exige uma partida entre a seleção do nosso planeta
(comandada por um técnico brasileiro) e a selecionado E.T. - que se revela
composto exclusivamente por andróides modelados a partir dos dois maiores nomes
do futebol brasileiro.
O conto é uma paródia inteligente escrita por Fábio
Fernandes: "2010, o Ano em que Faremos Contrato".
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Ataíde Tartari |
Outro conto irônico, mas sombrio, é
"Craque na Família", de Ataide Tartari. Narrativa segura, seguindo a
tradição dos contos sobre objetos de poder que realizam a vontade de quem os
possui - aqui, tornando um garoto numa promessa esportiva, enquanto desperta os
ciúmes do esbaforido pai de um colega.
Há dois contos epistolares no livro,
"Santos F.C.", de Regina e "Carta à Redação", de Braulio
Tavares. O primeiro fala da visita de um time de andróides, reproduzindo o
Santos clássico de Pelé e Zito, às voltas com problemas gravitacionais enquanto
enfrenta o time de várzea de um planeta periférico que nem se lembra mais da
Terra.
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Braulio Tavares |
O segundo é a carta de um acadêmico ao
jornal que publicou artigo de um historiador, sobre uma guerra entre o Brasil e
um país vizinho, motivada por nossa incapacidade de nos classificarmos para uma
copa do século 21.
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Gerson Lodi-Ribeiro assinou com o pseudônimo de Carla Cristina Pereira a história "Se Cortez Houvesse Vencido a Peleja de Cozumel". |
O livro possui dois trabalhos de
história alternativa, um ramo da FC que supõe desvios nos caminhos da História,
levando a realidades muito diferentes da nossa. Em "Se Cortez Houvesse
Vencido a Peleja de Cozumel", de Carla Pereira, o conquistador Hernán
Cortez encontra pelo caminho um desafio de tlachtli, espécie de futebol
nativo-americano que terminava com a morte do time perdedor. Como resultado do
jogo, os nativos das Américas retém o controle do continente e chegam até a
atualidade como uma potência não-européia. O conto é problemático por carecer
de drama.
A outra narrativa de história
alternativa é "Pátria de Chuteiras", o principal cultor desse
subgênero no Brasil. Centrado num único jogo, o conto explora a idéia do Brasil
enfrentando Palmares (uma república que teria surgido com o Quilombo dos
Palmares) na final de uma Copa do Mundo.
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Octávio Aragão |
Outro trabalho merecedor de elogios é
"Eu Matei Paolo Rossi", de Octávio Aragão, frenética aventura de
viagem no tempo em que o protagonista-narrador é acidentalmente apresentado a
uma polícia temporal (a história foi a base da série Intempol, criada por Aragão
e desenvolvida por diversos autores). Narra como o jovem protagonista viaja no
tempo pra cá e pra lá, mas não explica com que dinheiro e passaporte ele
embarca do Rio de Janeiro para Madrid, a fim de matar o carrasco italiano da
Copa de 82, Paolo Rossi.
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Carlos Orsi |
Mais consistente talvez sejam "Sob
o Signo de Xoth", de Carlos Orsi, e "O Que Vale É Bola na Rede",
de Cesar Silva. O primeiro inspira-se em H. P. Lovecraft para tratar de um
grupo esotérico de cores contemporâneas que arma um massacre durante uma
partida local, para ressuscitar um monstro antediluviano. Martinho caracteriza
bem o ambiente da cidadezinha o percurso do jornalista-investigador que se vê
preso no meio da trama sobrenatural.
Já o conto de Silva fala de uma partida
decisiva no futuro próximo, em que um gênio brasileiro em neurologia robótica,
ao invés de ganhar o Prêmio Nobel, se dedica a turbinar a mente dos jogadores
brasileiros, num doping de neurônios. Um comentário sobre as proporções
da paixão brasileira pelo esporte.
A maioria das histórias trata do
futebol como componente da identidade brasileira, e aborda momentos decisivos
em que o estado de espírito da coletividade brasileira depende dos resultados
da Copa do Mundo, ou extrapola essa perspectiva para situações em que o esporte
altera a história e a condição dos países.
Toda antologia temática possui alguns
trabalhos muito bons, uma maioria mediana, e uns poucos que não deveriam estar
ali. Outras Copas, Outros Mundos tem 4-3-4 com ataque ágil, um
meio-de-campo meio fraco, e uma defesa bem fechada. Como o recém-falecido Telê
Santana afirma no prefácio, trata-se de é uma antologia variada, que combina o
maravilhoso da FC com o espetacular do futebol.
Um livro que fornece um sólido argumento
em favor das propostas do Movimento Antropofágico da FCB - não há temas que uma
literatura realmente engajada em reconhecer a realidade brasileira não possa
transformar em boas histórias.
***
Abaixo, um dos autores da
antologia “Outras Copas, Outros mundos”, Gerson Lodi-Ribeiro, detalha para os
leitores do Literatura na Arquibancada que nunca tiveram contato com textos da
ficção científica brasileira o que encontrarão em sua história. E mais abaixo,
um trecho da criação do autor, “Pátria de Chuteiras”.
Pátrias
de Chuteiras é uma noveleta sobre futebol.
Como é? Não é história alternativa? Sim, também é. Mas, antes de tudo, é
a história de uma partida de futebol. No caso, a final de uma Copa do Mundo.
A proposta era escrever um trabalho de ficção que fundisse o assunto
futebol aos temas típicos da fantasia, do horror, da ficção científica ou da
história alternativa. Caso aprovado, o trabalho integraria a antologia temática
que a Editora Ano-Luz estava organizando no início de 1998, a Outras
Copas, Outros Mundos. Neste sentido, Pátrias
de Chuteiras é o trabalho mais fiel ao propósito
precípuo da antologia, pois toda a ação da noveleta se passa dentro de um
estádio de futebol. No fundo, a noveleta mostra o que acontece durante essa
partida, intercalando à trama futebolística em si, o dilema do técnico de uma
das seleções, dividido entre dois sentimentos de lealdade antagônicos: o
patriotismo que nutre pelo Brasil e a vontade de defender os interesses da raça
negra, discriminada no Brasil e discriminadora em Palmares.
Isto posto, é de todo provável que o leitor pouco afeito ao "rude
esporte bretão" não se entusiasme muito com Pátrias
de Chuteiras. Paciência. Em minha defesa, só posso
apresentar a alegação de que, assim como a ficção científica não se limita a
robôs, naves estelares e pistolas-laser, a história alternativa não se limita
aos grandes efeitos de decisões militares, que mudam o curso de batalhas
decisivas e, portanto, da história como conhecemos.
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Maurício de Nassau |
Em termos de história alternativa, Pátrias de Chuteiras insere-se na linha histórica dos Três Brasis, em tudo idêntica à nossa
até 1647, ano em que Maurício de Nassau decide regressar ao nordeste brasileiro
para reassumir o governo de Nova Holanda. Nassau estabelece uma aliança com a
Confederação de Palmares. Juntas, Nova Holanda e Palmares, conseguem derrotar a
Coroa Portuguesa e, como resultado, Palmares torna-se a primeira nação
independente da América, cerca de um século antes dos Estados Unidos.
É provável que alguns de vocês já conheçam esta linha histórica
alternativa, da leitura das noveletas O Vampiro de Nova Holanda e Assessor Para Assuntos Fúnebres. A maior diferença é que, ao contrário daqueles trabalhos,
em Pátrias de Chuteiras o
filho-da-noite que atende pela alcunha de Dentes Compridos não dá o ar de sua
graça.
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Cometa Halley, em 1986. |
A noveleta é o que os estudiosos do gênero da história alternativa - ou
ficção alternativa, como preferem alguns - costumam designar como
"presente alternativo", ou seja, uma história cuja ação se passa nos
dias de hoje, ou bem próximo disso. A decisão da Copa do Mundo dos Estados
Unidos se dá em 1986, o ano da passagem do cometa de Halley, e também o ano em
que os cientistas de Palmares divulgam para o mundo uma descoberta que mudará
os rumos da civilização... Contudo, nada disso é importante para a história da
partida.
O drama do técnico Nascimento dos Santos me foi inspirado pelo jogador e
técnico Didi.
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Didi, técnico da seleção peruana na Copa de 1970. |
Para quem não sabe, esse jogador eminentemente técnico foi um dos heróis
da vitória da seleção brasileira no Mundial de 1958 na Suécia. Mais tarde, Didi
tornou-se técnico da seleção peruana, conseguindo classificá-la para a Copa do
Mundo do México, em 1970. Por ironia do destino, as seleções brasileira e
peruana se enfrentaram nas quartas-de-final. Antes da partida, discutiu-se
muito no Brasil (e provavelmente, também no Peru), como o técnico brasileiro da
seleção peruana se comportaria. Ele cantaria o hino nacional brasileiro?
Colocaria a mão no peito durante sua execução? E durante a partida em si?
Torceria pelo Brasil? Ou pelo Peru?
A ficção exagera a realidade. Em Pátrias de Chuteiras, o negro brasileiro Nascimento dos Santos, considerado o maior jogador
de futebol de todos os tempos, torna-se técnico da seleção palmarina. Só que
Palmares e Brasil são os piores inimigos. Ao longo de suas histórias, as duas
nações já travaram cerca de uma dezena de guerras e conflitos menores.
Conflitos onde Palmares quase sempre se saiu vitorioso; a ponto do território
brasileiro nessa linha histórica alternativa ter se reduzido aos estados das
regiões sul, sudeste e metade da centro-oeste. Como se isto não bastasse, além
deste antagonismo histórico, ambas as seleções já se sagraram campeãs mundiais
duas vezes e, pelo regulamento da FIFA, a primeira seleção nacional a se sagrar
tricampeã mundial conquistará a posse definitiva da Taça Jules Rimet, um troféu
de ouro maciço que, muito mais que seu valor material, trará consigo imenso
prestígio político ao país que conseguir levá-lo para casa.
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Taça Jules Rimet |
Se mesmo em nossa linha histórica, futebol no Brasil já é coisa séria,
na LHA descrita, essa partida se desenrola como autêntica batalha campal -
reflexo não só da rivalidade de mais de três séculos entre brasileiros e
palmarinos, como do choque entre duas visões de mundo muito diferentes, e de
dois ideais de superioridade racial incompatíveis.
Na época em que a antologia Outras Copas, Outros Mundos foi publicada, alguns leitores me perguntaram se Nascimento dos Santos
seria um "Pelé Alternativo". A resposta é depende. Depende do que se
entenda por "Pelé Alternativo".
Em termos estritos, não. É inconcebível imaginar a existência do
futebolista Edson Arantes do Nascimento numa LHA que já divergiu da história
que conhecemos há mais de três séculos. Não obstante, alguns paralelismos
histórico-pessoais que, por capricho, decidi introduzir no enredo.
Em termos genéricos, eu diria que sim. Embora não seja o Pelé, o
personagem Nascimento dos Santos foi livremente inspirado nessa grande figura
da história esportiva, e foi idealizado como uma homenagem ao Pelé de NLH.
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Abaixo, um pequeno
trecho da noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro, “Pátria de Chuteiras”, que pode ser
lida na íntegra no link
“A SELEÇÃO É A PÁTRIA DE CHUTEIRAS.”
[NELSON RODRIGUES,
DRAMATURGO E DIPLOMATA BRASILEIRO]
JULHO DE 1986.
JOHN F. KENNEDY MEMORIAL STADIUM -
FILADÉLFIA — E.U.A.
FINAL DA DÉCIMA QUINTA COPA DO MUNDO DE
FUTEBOL.
Nascimento
transpira em abundância, molhando a camisa branca de linho, embora o calor
desse dia ensolarado de verão na Pensilvânia não o incomode tanto assim. O que
sentirá quando ouvir os primeiros acordes do hino nacional brasileiro? Quando
fitar a bandeira de seu país, agora a seleção adversária, hasteada num mastro
deste estádio?
Os
titulares e reservas das duas seleções finalistas estão alinhados de pé no centro
do gramado do Kennedy Stadium. O público de quase cento e vinte mil pessoas faz
silêncio absoluto em respeito aos hinos nacionais que estão prestes a ser
executados.
Primeiro
vem o hino de Palmares. A bandeira verde com o carcará negro de asas abertas no
centro é hasteada lentamente. Nascimento não consegue ver dali, mas sabe que o
carcará da Primeira República carrega uma lança, um caule de cana-de-açúcar e
uma luneta nas patas cerradas.
Disfarça e olha em volta, examinando
as arquibancadas do estádio. Há três torcidas distintas: a palmarina, presente
em números expressivos no lado oeste; a pequena e ruidosa torcida brasileira,
distribuída nas arquibancadas do extremo leste, e a vasta maioria
norte-americana, que os organizadores decidiram colocar no centro, para separar
os torcedores palmarinos e brasileiros. A torcida americana deveria ser francamente favorável a Palmares, até por razões
históricas. Afinal, durante a Guerra de Secessão, os carregamentos de armas e
munições palmarinas adquiridas pelo Norte foram desembarcadas ali, em pleno
porto de Filadélfia. Mas, como Nascimento receava, a derrota humilhante do time
da casa ante os palmarinos nas semifinais, e a conseqüente demolição do sonho
de disputar sua primeira decisão de Copa do Mundo, havia feito com que muitos
americanos presentes no estádio empunhassem ban-deiras azuis cobalto do Brasil.
(...)
André:
ResponderExcluirJá corri na Estante Virtual e garanti um exemplar pra minha biblioteca! Ótima matéria, me pegou de calça curta como um drible pelo meio das pernas.
Abraços,
Cesar