Depois que um atleta
de alto nível, como o goleiro Marcos, decide dar por encerrada a carreira,
começa um processo na vida desses homens e mulheres bastante complicado. Tudo
dependerá de como cada um viveu sua vida pessoal e profissional e,
principalmente, no caso de atletas destacados como o goleiro Marcos, de como
assimilaram a figura de “herói” incutida por seus fãs. O que farão de suas
vidas agora? Como será a complicada transição de herói para “cidadão comum”?
Para refletir sobre
todas essas situações, a psicóloga do esporte, Dra. Katia Rubio tem um texto
fantástico e que foi elaborado para a biografia que ela publicou sobre Joaquim
Cruz, campeão e herói como o goleiro Marcos.
O que Literatura na
Arquibancada apresenta abaixo são fragmentos desse texto, recomendando, então,
a leitura na íntegra na biografia de Joaquim Cruz: “Joaquim Cruz – Estratégias de
Preparação Psicológica: da Prática à Teoria” (Editora Casa do Psicólogo, 2008).
PREPARANDO-SE PARA A TRANSIÇÃO DE
CARREIRA
(...)
De acordo com Sgobi (2008) o encerramento da carreira
esportiva começou a ser compreendido como um importante fenômeno nos últimos
vinte anos. Isso porque a divisão social entre atletas de elite e a população
em geral começou a ganhar novos contornos a partir do final da década de 1980
com a expansão da profissionalização de atletas até então proibida pelas
rígidas normas do Comitê Olímpico Internacional.
Um dos elementos que leva um atleta a planejar a transição de sua
carreira é o fato de seu corpo já não mais responder às expectativas de
rendimento em treinos e competições, impedindo a obtenção de resultados
passados. Para aqueles que viveram a condição de campeões, essa situação ganha
outros contornos uma vez que além dos resultados competitivos esse atleta
experimentou também a glória da vitória e todos seus desdobramentos. (...)
O término de carreira e a pós-carreira atlética têm chamado a atenção de
estudiosos tanto da Psicologia como da Sociologia do Esporte. Isso porque ao
representar um papel de destaque na indústria cultural contemporânea, o
esporte, seus protagonistas e seus feitos são compartilhados socialmente o que
torna o atleta uma figura pública, de grande reconhecimento popular e, em
alguns casos, a imagem do seu país em âmbito internacional. O desdobramento
disso é a dificuldade em manter sua privacidade e lidar com cautela com
questões que transitam no limite entre o público e o privado. Deixar de
defender as cores do país, em alguns casos, é muito mais do que uma decisão
pessoal, ela pode representar uma questão de Estado. E diante do contexto
social e político vividos esse final de carreira pode representar o
recolhimento e o gozo desejados como também pode significar uma forma de
traição ou falta de cuidado com milhões de pessoas.
Encerrar a carreira esportiva é um processo similar à morte, no sentido
de que se finaliza um processo produtivo – a carreira esportiva – para se
iniciar uma nova atividade em um novo papel social, muitas vezes desconhecido
enquanto se vive o papel de atleta. Adaptar-se a essa nova atividade é como
nascer para uma nova vida.
Por isso, retirar-se das competições e finalizar uma carreira esportiva
tem sido interpretado por linhas teóricas derivadas da tanatologia - área que
estuda os processos relacionados com a morte -, da gerontologia social -
ciência que estuda os processos de envelhecimento - e da Psicologia do
Desenvolvimento (Wylleman et alli, 1999).
Tanatologia é o estudo do processo de morte e de estar morrendo e tem
sido aplicada na aposentadoria do esporte através de alguns modelos. Um deles é
o de “Morte Social”, uma vez que se identifica na aposentadoria do esportista,
o término de carreira atlética que pode ser acompanhado de perda de função
social, isolamento e ostracismo. Outro modelo utilizado para se entender a
transição de carreira é o de “Consciência
Social”. Essa perspectiva é muito utilizada em instituições hospitalares
que precisam lidar com a situação de terminalidade tanto com o paciente
enfermo, como com a família e a equipe de saúde. Nessa situação vivem-se
condições extremas como a necessidade de informar ao paciente sobre seu estado
de saúde e à família sobre a impossibilidade daquela situação persistir por
mais tempo.
No contexto do esporte esse quadro é vivido de forma intensa pelo
atleta, pelos companheiros de equipe, além da comissão técnica e dirigentes. Em
um contexto de consciência duvidosa
existe por parte do sujeito que ele está morrendo, mas ele tenta confirmar ou
negar a suspeita levantada. No esporte essas suspeitas se anunciam quando do
afastamento de competições, do desligamento da equipe ou pelo tom com que o
técnico e/ou companheiros de time se referem ao momento vivido. Por outro lado,
no contexto de consciência aberta
todos estão cientes da morte inclusive o próprio sujeito, o que no caso do
esporte significa dizer da percepção de todos sobre o final da carreira, o que
permite a discussão entre o atleta, técnico e companheiros de time e os
sentimentos correspondentes a ela (Martini, 2003). (...)
Outra possibilidade para se compreender a transição de
carreira é pela gerontologia social, definida como a “análise sistemática do
processo de envelhecimento” (Lavallee
& Wyllemann, 2000). Se por um lado a gerontologia social procura
explicar as atividades e seus desdobramentos na vida daqueles que parecem
prósperos para a idade, esclarecendo o processo geral de aposentadoria da força
de trabalho, no esporte ela busca entender os ajustamentos que o atleta tem que
fazer em seus novos papéis sociais. Porém, os psicólogos do esporte têm feito
algumas críticas a esse modelo porque consideram os atletas um tipo singular de
profissional dentro da sociedade atual, o que lhes proporciona uma condição
também diferenciada na aposentadoria, tanto pela precocidade com que ela
acontece em relação a outras atividades profissionais, como pela visibilidade
que o protagonista da prática esportiva tem para a sociedade.
Embora tenham representado importante avanço nos estudos
relacionados à transição de carreira, os modelos da Gerontologia Social e da
Tanatologia apresentam algumas limitações. Isso porque o final da carreira é
visto como um evento único na vida do atleta e seu foco está situado no final
de um processo de desenvolvimento de vida, como se a existência tivesse deixado
de ocorrer a partir daí. Não há, nesses casos, a consideração do
desenvolvimento de uma nova identidade a partir desse momento, afirmando uma
similaridade com a morte e o fim, tomando o término de carreira como um evento
absolutamente negativo.
Os modelos da Psicologia do Desenvolvimento no estudo da
transição de carreira ao contrário dos modelos tanatológicos e gerontológicos
entendem a aposentadoria como um processo e não como um evento único na vida do
atleta. Isso porque nessa perspectiva entende-se que a nova identidade é a
continuidade do que se passou, inclusive porque a sociedade mantém o
reconhecimento do sujeito, e consequentemente seus feitos, a partir do papel
desempenhado no passado e porque o núcleo social constituído ao longo dos anos
de carreira esportiva, principalmente da família, mantém-se o mesmo (Wylleman,
Knop, Verdet & Cecic-Erpic, 2007). (...)
É grande o esforço a ser realizado pelo atleta para se
completar o processo de transição de carreira. Para que ela se dê de maneira
saudável é preciso um grau de disposição interna para a adequação ao novo papel
social que envolve alguns procedimentos. O primeiro deles diz respeito à
assimilação da nova identidade e todos os seus desdobramentos, parafraseando o
dito shakespeareano ser ou não ser.
Isso tem relação direta com a transformação desse papel junto à sociedade que
também necessita de tempo para poder ter o atleta não mais como aquela figura
heróica capaz de realizar feitos incomuns, mas como um cidadão que tem suas
obrigações e afazeres.
A apropriação desse novo papel se reflete também nas
interações humanas, tanto em nível familiar como com os companheiros do passado
que ainda se mantêm nos papéis atléticos (Drahota & Eitzen, 1998).
No modelo de transição formulado por Stambulova (1994) a
transição de carreira é tida como um acontecimento crítico da vida que como
outros precisam de uma estratégia para serem elaborados e superados. Afirma que
esse planejamento estará pautado na história de vida do atleta que se retira, e
portanto, é necessário que se observe a duração e limites de idade da carreira
esportiva vivida; a especialização alcançada pelo atleta, caracterizada pelo
número de eventos esportivos dos quais participou e pelo número de papéis
desempenhados pelo atleta no esporte em toda a extensão de carreira; nível de
conquistas; e por fim o custo da carreira, considerando o gasto de tempo, de
energia, de saúde e de dinheiro. Há que se considerar ainda o grau de
satisfação do atleta com a sua própria carreira e o nível de sucesso e
reconhecimento social alcançados.
A realidade do atleta que se dedica a conquistar grandes marcas é árdua
o que o leva a se sentir muitas vezes no limite de sua capacidade. Martini
(2003) aponta que atletas com elevados
recursos para lidar com as situações de transição tenderão a experimentar
menos estresse do que atletas com poucas habilidades para alterar suas rotinas
e hábitos de vida, sendo que a qualidade de
ajustamento está influenciada pela quantidade de recursos disponíveis para
lidar com a nova situação. (...)
Na relação entre o ego e o desempenho de papéis sociais muitas vezes o
atleta se vê identificado apenas com a figura espetacular sugerida pela
condição de esportista – aquele capaz de realizar grandes feitos – dificultando
sua participação em situações da vida cotidiana e em outras atividades sociais.
Se por um lado sua condição de atleta diferenciou-o de uma grande parcela da
população, permitindo que goze de privilégios reservados a poucos, por outro
dificulta a tomada de decisões de âmbito privado por ser ele uma figura
pública.
Saber pôr fim a um papel social exige sabedoria. E poucos no esporte
contemporâneo souberam fazer isso com maestria. (...)
Repartir as glórias
conquistadas com sua comunidade, essa é a condição diferencial do herói.
Sobre Katia Rubio:
Professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da
Universidade de São Paulo, orientadora nos programas de Pós-graduação da
EEFE-USP e FE-USP. Escreveu e organizou 15 livros acadêmicos nos últimos 10 anos
na área de Psicologia do Esporte e Estudos Olímpicos abordando os temas
psicologia do esporte, estudos olímpicos, psicologia social do esporte,
psicologia do esporte aplicada e esporte e cultura. É também bacharel em
Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero (1983) e Psicologia
na PUC-SP (1995). Coordena
atualmente o Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano da EEFE-USP e
foi presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte entre os anos
de 2005 a 2009.
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