Do Jardim Irene, periferia de São Paulo para o mundo. Marcos
Evangelista de Moraes, o Cafu, é o personagem do artigo escrito por Guilherme Rogado, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e Ademir Luiz, Doutor em História e
professor na mesma UEG. O artigo foi escrito em julho de 2010.
Cafu, o Forrest Gump brasileiro
De tempos em tempos, pessoas comuns são
abençoadas com extrema sorte. O destino lhes sorri. Tudo o que fazem, mesmo
contra possibilidades estatísticas, dá certo. Não raro, até quando não fazem
nada, tudo também da certo. Os mais cínicos diriam que nascerem virados para
Lua. Poucos se encaixam nestas situações com tanta propriedade quanto Marcos
Evangelista de Moraes. Marcos, um brasileiro. Quem? Esse é o nome de batismo do
nosso eterno Cafu, lateral direito que monopolizou a camisa 02 da Seleção por
anos e anos.
Como qualquer peladeiro sem unha sabe, Cafu é
um lateral comum. Se não é um craque, também não é um perna-de-pau. Fica na
média. Mesmo assim, conseguiu marcas incríveis considerando seus parcos
talentos. Isso lembra um tipo marcante da década de 1990: Forrest Gump, personagem
interpretado pelo oscarizado Tom Hanks. No filme, dirigido por Robert Zemeckis
e levemente inspirado no clássico O
Idiota, de Dostoievsky, o ingênuo Forrest Gump conseguiu realizar feitos incríveis
de um jeito totalmente despretensioso.
Para citar apenas alguns, mesmo tendo
enfrentado graves problemas físicos na infância, ensinou Elvis a dançar, foi uma
estrela de futebol americano, herói de guerra e craque do tênis de mesa. Sem
ter a menor noção de política, participou de manifestações pacifistas contra a
Guerra do Vietnã, envolveu-se com os Panteras Negras e inspirou John Lennon a compor
Imagine. Sem deixar de ser um caipira
do meio-oeste americano fez fortuna com pescado e foi alto acionista da Apple.
Conheceu diversos presidentes da república e tirou um do poder, Nixon, sendo o responsável
pela exposição da espionagem no edifício Watergate. Tudo isso sem saber o que
estava fazendo e com um Q.I abaixo da média.
Antes de se perguntar o que Cafu tem a ver
com isso, dê uma segunda olhada em sua carreira. O mundo acompanhou seu acúmulo
de títulos e recordes, mas, como para todo aspirante a jogador profissional,
tudo começou nas peneiras da vida. Nosso afortunado “craque” conseguiu ser
reprovado em oito delas. Isso mesmo, oito! Uma a mais do que sete, que é o
número do infinito. Mas não desistiu de seu sonho, até, finalmente, acertar e
ser aceito na nona, no São Paulo. Não precisa ser um gênio da matemática para saber
que a probabilidade de oito peneiras terem acertado é maior do que uma. Mas no
caso da sorte de Cafu, nem a matemática explica.
Para sua sorte, Cafu chegou no São Paulo na
era vitoriosa de Telê Santana. O mestre Telê imediatamente simpatizou com o
júnior de apelido estranho e nome de evangelista e de poeta. Resolveu apostar
nele. Quem tem padrinho não morre pagão. Para começar, o mestre resolveu
reinventar Cafu. Seu olho clínico percebeu que ele não rendia em sua posição de
origem, no meio de campo, jogando de volante. Testou-o como lateral, fazendo-o treinar
cruzamentos exaustivamente. Nunca se tornou um grande cruzador, mas seu fôlego
incansável garantiu-o na nova função. Se há uma coisa que Cafu sabe fazer é
correr. Ele e Forrest.
O resultado da aposta de Telê foi o bi-campeonato
na Taça Libertadores da América, em 1992 e 1993. Anos em que foi Bola de Prata
da Revista Placar. Mas Cafu não parou de correr e de aparecer em programas de
TV. Tanto correu que deu a volta no mundo, chegando ao Japão. Ganhou com o
Tricolor Paulista o Mundial Interclubes de 1993. Foi convocado para a Copa de 1994,
nos Estados Unidos, terra de Forrest. O Brasil não ganhava a competição desde
1970. Parecia que não ganharia de novo. Era uma seleção de cafus. Repleta de
jogadores comuns.
Mas ninguém contava com o aparecimento de um
gênio absoluto, Romário, que repetiu o feito de Garrincha de 1962 e ganhou uma
Copa, praticamente, sozinho. Cafu foi junto e de lambuja jogou os últimos
minutos da final, herdando a posição do veterano Jorginho. Por efeito inércia foi
titular na Copa de 1998, onde se destacou em uma Seleção que chegou à final
jogando mal. Dessa vez, os deuses do futebol dormiram e a Seleção Brasileira
perdeu para Zidane e seus amigos azuis.
Durante muitos anos, o esforçado lateral não
viu ninguém que pudesse ameaçar sua titularidade na Seleção Brasileira. Não que
Cafu fosse tão melhor assim. Simplesmente não havia outro sequer razoável. Mas
isso não era o bastante. Veio a copa de 2002, sua terceira seguida. Dias antes
da estréia, o então capitão Emerson fraturou o braço em um rachão. A braçadeira
caiu no colo logo de quem? Cafu já havia conseguido jogar uma copa como o
reserva que entrou na final. Uma como titular absoluto. E porque não também como
capitão? De que outra maneira o mundo conheceria o nome de sua amada esposa
Regina, ou de sua comunidade nos tempos de pobreza? Quem além de um legítimo
Forrest Gump tupiniquim conseguiria “contar histórias” pessoais durante o
sagrado ritual de levantar a Taça do Mundo? E quem mais subiria em um banco
para fazer isso?
Cafu ganhou um interessante apelido devido ao
seu invejável condicionamento físico: “o trem expresso”. Jogou em grandes
clubes da Europa e do Brasil. Coleciona recordes invejáveis: maior número de
jogos pela seleção brasileira, único atleta presente em três finais de Copa
seguidas, campeão italiano, brasileiro, da Liga dos Campeões, duas
Libertadores, duas copas do mundo etc, etc, etc. O resto é história... a Copa
de 2006, por exemplo!
Sempre acompanhado por anjos da guarda, um
olheiro distraído, mestre Telê, o azarado Emerson e outros que fazem parte da incrível
história de nosso macunaímico herói, Cafu tornou-se uma lenda. Aplausos!
Méritos dele. Mesmo? Os deuses do futebol são manhosos. Escolhem seus
preferidos. Afinal, Cruyff, Puskas e Zico não foram Campeões Mundiais; Paulo
Sérgio, Dadá Maravilha e Dunga foram.
Não que Cafu seja ruim, longe disso, ele
apenas chegou um “pouquinho” longe demais considerando pragmaticamente sua
perícia futebolística.
Afinal, futebol não é atletismo. Assim como Forrest Gump,
nem em seus sonhos mais delirantes Cafu imaginaria ir tão longe. Para ficar
igual, só faltaria sua amada entoar gritos de incentivo na beira do campo: “Corra,
Cafu, corra”!
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