Por André Ribeiro
Nunca fui um
craque, mas também não era o que se chama na linguagem dos boleiros de um “cego”.
Tinha boa técnica, velocidade e o que é extremamente importante em uma partida:
“boa leitura de jogo”. Na várzea, acostumei-me a ver grandes jogos, duelos
sensacionais que participei, dentro e fora do campo. E uma lição que aprendi
convivendo com a “boleirada” é que quando íamos enfrentar uma equipe que todos reconheciam
ser “quase imbatível”, só havia duas opções: ir pra cima sabendo que levaríamos
vários gols, mas “indo pro jogo”; ou eleger no adversário jogadores que
deveriam ser marcados individualmente.
Tudo isso para
dizer que hoje, o Santos, na derrota para o Barcelona, não fez nada parecido
com o que me acostumei a ver nos bons tempos da várzea: nem jogou, nem marcou.
Ah, mas irão dizer: “mas como comparar um time de várzea com o poderoso
Barcelona?” Dá sim, respondo a você, leitor e torcedor. Quando perdemos a
essência do que somos dentro de um jogo (amador ou profissional, no campo de
terra ou no tapete do Camp Nou), não há o que se fazer. E hoje, o Santos fez
isso, perdeu a essência, o brilho próprio, a magia...Mudou sua formação para tentar “achar”
o adversário em campo. Mais uma lição, como não cansou de afirmar a estrela
Neymar durante as entrevistas do pós-jogo: “Aprendemos hoje vendo o Barcelona a
como jogar”.
E é exatamente isso que temos visto
ultimamente no futebol brasileiro. Pouco a pouco deixamos de ser protagonistas
para virarmos coadjuvantes.
Para resgatar um
pouco dessa auto-estima brasileira, vale recuperar um texto do jornalista e
escritor Joaquim Ferreira dos Santos, publicado no livro “Futebol-Arte – A cultura
e o jeito brasileiro de jogar” (Editora Senac, 1998).
“O drible da
vaca. Se você não sabe do que se está falando, perdeu um dos bons motivos para repetir
a marchinha carnavalesca e dizer, orgulhoso, que ‘com o brasileiro não há quem
possa’. Outros povos, outros cérebros, fundiram o átomo e explodiram a bomba
nas cabeças alheias. Outras línguas criaram infernos dantescos e geniais. De
outras pranchetas voaram satélites. Nós inventamos o drible da vaca.
Estufe o peito.
Não é pouco. É uma operação tão criativa quanto qualquer vacina Sabin, tão
estupefaciente quanto um mega Gates.
O jogador, a bola, o adversário. Frente a
frente. Jogue a bola por um lado, corra pelo outro, dando a volta no inimigo.
Alcance-a novamente e invista contra o gol.
Na Copa de 1970, no
México, Pelé deu um drible desses no goleiro Mazurkiewicz, do Uruguai. Ofereceu
um plus: sequer tocou na bola, enganando o goleiro com o corpo. É uma das cenas
do século (como a de Armstrong deixando as pegadas na lua, o bafo do metrô descortinando
as coxas de Marilyn) e neste momento deve estar passando em alguma TV a cabo do
mundo. Arrepiante. Arte. Coisa de brasileiro. No bom sentido.
Ninguém sabe
explicar onde os genes confluíram, em que momento as bolas trazidas por Charles
Miller em 1894 começaram a ser tocadas de um jeito diferente daquele usual no
resto do mundo.
Todos reconhecem,
no entanto, que a bicicleta do Leônidas, a folha seca do Didi, o drible
elástico do Rivelino, as embaixadas do Paulo César Caju, o chute de três dedos
do Gérson, o finge-que-vai-e-vai do Garrincha, o gol de calcanhar do Túlio, o
drible da vaca do Pelé, todas essas maravilhas são suficientes para fazer um
país.
Querem alguns que
foi a confraternização racial ou o acesso dos pobres, já no começo do século,
aos clubes elitistas que praticavam o esporte. Outros preferem falar dos campos
esburacados de várzea obrigando uma atenção maior nas jogadas ou a iniciação
com incríveis pelotas de meia recheadas de papel. Não importa. Somos especiais
no futebol, da mesma maneira que João Gilberto é único na música e Sônia Braga
no jeito de descontrolar os quadris. Os outros são bons em clonar ovelhas, mas,
grandes coisas, morrem de tédio com isso. Eles queriam mesmo é reproduzir o
drible da vaca, e correr para o abraço.”
Sobre Joaquim
Ferreira dos Santos:
(fonte: http://www.releituras.com/jfsantos_menu.asp)
Escritor e jornalista, nasceu no Rio de Janeiro
(RJ) em 1951. Trabalhou como repórter, crítico de música e show na revista
"Veja" durante mais de 10 anos. Foi editor das revistas
"Domingo" e "Programa", do "Jornal do Brasil". Em
1991 foi editor executivo do jornal "O Dia". Atualmente é cronista e
colunista do jornal "O Globo". Alguns de seus livros já publicados:
"Feliz 1958! — O ano que não devia terminar", "O que as
mulheres procuram na bolsa", "Em busca do borogodó
perdido", "Seja feliz e faça os outros felizes", e "O que
as mulheres procuram na bolsa". Na coleção "Perfis do Rio", foi
o autor de "Antônio Maria — Noites de Copacabana", além de ter
organizado "Benditas sejam as moças — As crônicas de Antônio Maria",
"O diário de Antônio Maria" e "Um homem chamado Maria".
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