Que todos já ouviram histórias sobre músicos, escritores ou
jornalistas que chegaram a jogar futebol, isso não é nenhuma novidade. Mas o
contrário, um jogador, craque e ídolo do futebol mundial ter uma banda de
música e cantar, isso pouquíssima gente sabe.
Um dos personagens mais marcantes do futebol mundial, Ruud Gullit, é um dos perfis mais interessantes na produção do livro “A Magia da Camisa 10”,
escrito pela dupla de jornalistas, André Ribeiro e Vladir Lemos (Verus Editora,
2006). Talvez, por histórias curiosas como a de Gullit, o livro tenha sido
publicado em vários países, como Portugal, Hungria, Polônia e até mesmo, no
Japão.
Edição da Hungria, de "A Magia da Camisa 10" |
Vale a pena, após a leitura sobre a vida deste personagem
instigante, ver o vídeo em que ele aparece cantando com a sua banda de reggae.
Diferente de muitos jogadores, Ruud Gullit destaca-se
não só pelo visual, marcado pelas tranças do cabelo rastafári, mas pela cultura
e inteligência acima da média de seus companheiros de profissão. Uma razão para
isso pode estar na formação cultural de seus pais. Gullit é filho de um negro
surinamês com uma holandesa. George, seu pai, era um ex-jogador de futebol e
professor, enquanto a mãe trabalhava no Museu Rijks, de Amsterdã. Seu pai foi
seu maior incentivador nos primeiros anos vividos no Haarlem, bairro popular de
Amsterdã. O orgulho holandês de ver Cruyff vestindo a camisa da seleção é um
sentimento que o garoto, nascido em setembro de 1962, também soube despertar.
Só que seu caminho inicial não foi o mesmo do ídolo Cruyff. Depois de famoso,
tinha uma explicação simples, mas realista, para o fato de não ter começado a
carreira no mesmo clube que revelou o maior ídolo do futebol holandês: “A razão é simples. O campo do Ajax ficava
muito distante do lugar onde morava”.
Gullit começou bem cedo a praticar
futebol em Amsterdã. Os primeiros chutes foram dados aos oito anos, na
escolinha do Meerboys Club. Pouco depois passou para os amadores do DWS
Amsterdã e, com apenas 15 anos, já atuava entre os profissionais do modesto Haarlem.
Logo na primeira disputa do campeonato holandês, em 1979, Gullit deixava claro
seu estilo incomum, marcado pelo porte físico avantajado, aliado a ginga,
arranque e uma capacidade espetacular para encontrar espaços dentro de um campo
de futebol.
Em 1982 Gullit foi comprado pelo Feyenoord,
clube de grande tradição na Holanda, ao lado do Ajax. Na temporada de estréia
ganhou seu primeiro título holandês, fato que repetiria mais duas vezes, em
1985 e 1986, mas vestindo o uniforme do rival, PSV.
Em campo, o corpo negro de Gullit passou a
ser sinônimo de uma combinação fatal de força e talento. Os adversários
pareciam não ter muito a fazer diante de suas investidas, na maior parte das
vezes traçadas em uma linha diagonal.
Não demorou muito para que o poderoso
futebol italiano decidisse levá-lo. Em 1987, o empresário e presidente do
Milan, Silvio Berlusconi, decidiu abrir os cofres do clube e desembolsar 12
milhões de dólares para ter o futebol de Gullit. Com certeza, o investimento
foi mais do que compensador. Logo em sua primeira temporada no Milan, comandado
pelo exigente treinador Arrigo Sacchi, Gullit foi eleito o melhor jogador da
Europa e agraciado com a badalada Bola de Ouro. As portas da fama e do sucesso
estavam abertas para o negro holandês.
Obcecado por surpreender o adversário e com
um nível de exigência de abalar até os mais calmos, Sacchi era o homem certo
para extrair o máximo de um elenco raro. Além de Gullit, o Milan tinha ainda o
talento do atacante Marco Van Basten e do defensor Frank Rijkaard, ambos jovens
jogadores holandeses.
Não seriam poucas, nem pequenas, as
conquistas de Gullit com o time de Milão. Em 1988, ano em que triunfou pela
primeira vez no Campeonato Italiano, viveu um momento magnífico com a seleção
holandesa, que dois anos antes não havia sequer conquistado vaga para o Mundial
do México. Liderado pelo seu capitão e camisa 10, o time laranja chegou à final
da Eurocopa. A vitória por 2 a 0 em cima da União Soviética foi marcada pela
força de Gullit, que com uma cabeçada abriu o placar. Mais importante do que o
gol e o título era o resgate de uma geração de craques, como Johann Cruyff e
Johann Neeskens, que haviam perdido duas Copas do Mundo, em 1974 e 1978.
O prestígio e a fama de Gullit nos gramados permitiram ao jovem negro holandês começar a impor seu estilo fora de campo. Avesso às entrevistas, recusava-se a falar com a imprensa e amigos sobre suas atuações nos jogos que disputava. Sua vida particular ganhava muito mais importância no noticiário. Nessa época, aos 25 anos, Gullit já era casado e pai de duas filhas.
Tinha uma banda de reggae,
batizada de Revelation Time (Tempo de
Revelação), na qual cantava e tocava contrabaixo. Suas músicas foram gravadas
em discos e chegaram até as paradas de sucesso na Holanda. As longas tranças
utilizadas no cabelo, em homenagem ao músico jamaicano Bob Marley, marcaram a
imagem do craque. Para Gullit, futebol e música tinham outro significado: “Futebol e música têm aspectos comuns. Ambos
representam um potencial coletivo. Seu palco preferido são os estádios e as
ruas. Nos lugares onde outras formas de expressão foram proibidas, são a
alternativa para os jovens romperem a repressão. Isso: futebol e reggae
significam liberdade”.
Mas o que realmente chamava a atenção dos
críticos era a postura política de Gullit. A mesma vitalidade física do corpo
surgia no ativista contra o racismo e o sistema de apartheid da África do Sul. Em 1988, ano de sua consagração no
Milan, dois atos foram marcantes em sua vida pública. Em agosto, participou de
uma conferência internacional sobre a situação dos refugiados, desabrigados e
flagelados da África Austral, promovida em Oslo, Noruega, pela Organização da
Unidade Africana. Pouco depois, na véspera da partida entre Milan e Juventus,
dedicou a conquista da Bola de Ouro do ano anterior ao líder africano Nelson
Mandela, preso pelo regime de Pretória havia anos. Queria ler um manifesto, mas
foi desaconselhado pelos dirigentes do Milan. O veto não o fez calar. Gullit
distribuiu uma carta, com o manifesto, aos jornalistas presentes ao Estádio de
San Siro.
A posição firme na questão do apartheid fez de Gullit um porta-voz
para centenas de milhares de negros no mundo. Mais do que isso, o craque negro
deixava clara a postura que seus companheiros de profissão deveriam assumir:
Não estou me envolvendo em política. Não estou
fazendo política, porque não considero “política” o sistema do apartheid.
Defino o apartheid como um insulto à humanidade. E não creio que sejam tão
poucos os atletas que condenam o racismo e o apartheid. O problema é que os
jornalistas não perguntam muito aos atletas o que eles pensam sobre as
injustiças que existem no mundo. Em geral, querem saber sobre os jogos, sobre
as possibilidades de vitória de um time sobre outro... Ser jogador de futebol
não é sinônimo de burrice...
Dois anos marcaram a trajetória de
Gullit. Em 1989, apesar dos problemas no joelho, e também em 1990, ganhou tudo
o que um atleta profissional poderia sonhar em sua carreira. Conquistou o
bicampeonato da Copa dos Campeões, principal campeonato de Velho Continente,
foi bicampeão da Supercopa da Europa e também bicampeão do Mundial Interclubes.
O Milan de Gullit, jogador quase impossível
de ser marcado, foi a referência do bom futebol praticado naqueles anos. Passou
a ganhar adjetivos em série, como os de Rei, Magnífico e o que melhor se
encaixava com sua imagem, Tulipa Negra.
Se em 1986 a Holanda havia ficado de fora do
Mundial do México, na Copa da Itália, em 1990, Gullit era a maior esperança dos
holandeses. A Holanda, no entanto, acabou eliminada pela Alemanha Ocidental nas
oitavas-de-final por 2 a 1, em pleno Estádio Giuseppe Meazza, em Milão. Gullit
esteve irreconhecível em campo, mas havia uma razão. Entre 1988 e 1989 havia passado
por duas cirurgias no joelho direito, que o obrigaram a ficar parado durante dez
meses. Para muitos, Gullit estava acabado para o futebol. Dois anos após a
decepção da Copa, mesmo enfrentando dores nos joelhos, Gullit sagrou-se
bicampeão italiano, pelo Milan, em 1992 e 1993. A derrota para o Olympique de
Marselha, em maio de 1993, pela Copa dos Campeões, fez Gullit mudar de ares, na
Itália. Achavam-no velho demais para correr pelo tricampeonato italiano, no
Milan.
Contratado por um milhão de dólares para a
temporada 1993/1994, pelo Sampdoria, não decepcionou: ajudou a equipe de Gênova
a conquistar a Copa da Itália. Suas brilhantes atuações fizeram os dirigentes
do Milan admitir o erro de liberar o craque um ano antes. Voltou ao Milan para
a temporada 1994/1995 e preparou-se para disputar sua última Copa do Mundo.
O único problema é que o técnico Dick
Advocaat, da seleção holandesa, concluiu que Gullit já não tinha lugar na
equipe titular. Para não perder a tradição, o craque holandês criou polêmica na
sua saída da seleção. Decidiu abandoná-la em pleno período de concentração, no
balneário de Noordwijk, na Holanda, um mês antes do início da Copa dos Estados
Unidos. Era o final de uma trajetória iniciada em 1981 e que teve como saldo 64
partidas e 17 gols. Gullit encerrou a carreira de jogador no Chelsea, da
Inglaterra, onde também foi treinador, em 1997.
Em 1999, o anúncio da contratação de Gullit
como treinador do Newcastle fez as ações do clube subirem rapidamente quase 10%
na Bolsa de Londres. Façanhas de um homem eternizado pelas finalizações
potentes e precisas, que sabia como poucos proteger a bola e chegar, na maior
parte das vezes, de maneira fulminante até o gol.
Gullit foi curtir a vida, a música e
a família. Gostava de afirmar que, acima de um jogador de futebol, era um ser
humano, definição que Sven-Goran Erikson soube como ninguém deixar no ar: “Ruud Gullit? Não sei quem é
melhor: se o jogador ou o homem.
Gullit cantando com a banda Revelation Time.
Mas o que realmente chamava a atenção dos críticos era a postura política de Gullit. A mesma vitalidade física do corpo surgia no ativista contra o racismo e o sistema de apartheid da África do Sul. Em 1988, ano de sua consagração no Milan, dois atos foram marcantes em sua vida pública. Em agosto, participou de uma conferência internacional sobre a situação dos refugiados, desabrigados e flagelados da África Austral, promovida em Oslo, Noruega, pela Organização da Unidade Africana. Pouco depois, na véspera da partida entre Milan e Juventus, dedicou a conquista da Bola de Ouro do ano anterior ao líder africano Nelson Mandela, preso pelo regime de Pretória havia anos. Queria ler um manifesto, mas foi desaconselhado pelos dirigentes do Milan. O veto não o fez calar. Gullit distribuiu uma carta, com o manifesto, aos jornalistas presentes ao Estádio de San Siro.
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