No próximo final de semana, o Brasil inteiro
estará repleto de torcedores idênticos ao que um dos maiores mestres da
literatura brasileira traçou em uma crônica, publicada no livro “11 histórias
de futebol”, (Editora Nova Alexandria, 2006) e que o Literatura na Arquibancada
apresenta logo abaixo.
O escritor João Antonio ficou famoso no meio
jornalístico e literário pela capacidade que tinha de retratar proletários e
marginais que habitam as periferias das grandes cidades. E, dentro desse olhar
arguto, não poderia passar despercebido entre tantos temas que ele já abordou
sobre o futebol, a figura do torcedor. Não aqueles que lotam arquibancadas ou
ainda os que se acomodam confortavelmente na poltrona de casa. Mas aquele das
ruas, cenário que ele soube tão bem explorar em sua rica prosa.
“Viajando” na prosa de João
Antonio fica fácil imaginar o que poderá acontecer na rodada decisiva do
campeonato brasileiro de 2011.
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João Antonio |
Almas da galera
Poucas coisas tão velhas quanto
dizer que não há nada mais perdido sobre a terra do que o coração do homem. E
talvez ainda não se tenha dito que pouca coisa haverá, tão fiel, quanto o
coração de um torcedor.
Ora, quem ama não se pergunta por
que. E chega-se ao amor por caminhos mais desconhecidos do que a rota dos
antigos navegantes ou dos atuais cosmonautas. Mas no capítulo dos torcedores,
até William Shakespeare se enganaria: “Falai baixo, se falais de amor”. E, no
capítulo, o que é válido em relação a uma mulher é muito mais em relação a um
clube.
Nada adianta procurar as fontes
de inspiração e os segredos do Corinthians, do Flamengo, do Atlético...eles têm
lá os seus feitiços escondidos, suas transcendências, seja lá o que for. E não
se fale em cor, musicalidade de nomes, origens do mar ou da terra. Tudo é magia
e magia não se explica. Até há clubes anfíbios, do ponto de vista da origem e
de alcance popular enorme: Flamengo e Vasco, para dar dois exemplos.
Torcer é um ato de amor que vai
até a exaustão. E que, depois, recomeça com a mesma força. A ligação torcedor e
clube é tão desconcertante quanto uma ligação pirada. Mas possível. Um
casamento atormentado e duradouro.
Só loucos, sim. Como na canção de
Caymmi. Aí, rigorosamente universal o Shakespeare para quem o amor é cego, os
amantes não podem ver as deliciosas, e não, loucuras que eles mesmos cometem.
Os mais sensatos dizem tolices
enormes. Homens sérios saem do sério e se descompõem todos ou caem em
depressões estranhas e se entranham de paixão. Um banzo que se arrasta, doendo.
São palmeirenses até debaixo
d’água. Dizem: “meu coração é corintiano”. E uma vez Flamengo, Flamengo até
morrer. Torcedor doente é redundância.
***
Flagrei outra cena, das que me ficaram fundo,
bem isolada de outras que mexem com torcedores.
Uma da manhã. Ou mais.
No comecinho da Ladeira dos
Tabajaras, para quem vem do morro e pega a Rua Siqueira Campos, um crioulo na
madrugada carregando ao ombro uma bandeira enrolada do Flamengo ia que ia
quieto, cabeça pendida, canseira nas pernas, mariolando.
O seu Mengo havia batido o
Fluminense. À tarde e à noite, esses lados da cidade estiveram em festa,
movimento e tropel. À uma da manhã, o crioulo de cabeça arriada e bandeira ao
ombro ia bem cansado. Mas feito um guerreiro.
A iluminação fraca da rua o
pegava mal e mal, tudo deserto e ele ia muito sozinho lá com o seu sonho. O
queixo no peito. De repente, deve ter suspirado fundo antes, e rasgou. Ele
largou para ninguém um grito arrastado, e que demorou, meio tristeza e
desespero. Rindo, forrando, doendo, para ninguém:
– Mengo!
Poderia ter acontecido em Osasco,
Camanducaia, Dores do Indaiá ou Copacabana. Deu-se em Copa.
Há um botequim xexelento em
Copacabana, apertado e sujo, na Rua Domingos Ferreira – entre quantos... – onde
jamais consegui meter os pés que não ouvisse uma discussão brava, desregrada,
enfezada, gritada e, de ordinário, furiosa sobre futebol. Pedir um maço de
cigarros ou um café é um custo. A discussão sobre futebol abafa todas as vozes.
Noite e dia, dia e noite. Durante
anos, engordei como um desafio uma curiosidade. Entrar no tal botequim e não
flagrar uma gritaria de futebol. Difícil, senão impossível, isso nunca se deu.
Dia desses, ia acontecendo. O
botequim, numa dessas horas de almoço, o pessoal engolindo sanduíches,
cervejas, cachaça, cafés, se mantinha entretido. Somente os azulejos das
paredes gritavam futebol entre dísticos, emblemas, slogans, santos padroeiros e
protetores, ditos do povo misturando Mangueira, Vasco, umbanda, Império
Serrano, Flamengo, Ogum e, sobrepondo, duas imagens no cruzamento das bandeiras
brasileira e portuguesa – Nossa Senhora de Fátima e São Jorge Guerreiro. Tudo
em convivência. De resto, era um botequim neutro.
Depois de anos, entrava ali e não
recebia uma descarga de gritos futebolísticos. Os habituais entendidos não
pontificavam; exímios conhecedores, técnicos e preparadores físicos pareciam
ausentes; comentaristas espontâneos de estratégias e políticas de ataque e de
defesa haviam se calado de todo. Só se ouviam o barulho do caixa, o retinir de
alguma moeda ou dos garfos nos pratos e das colheres nas xícaras. Barulhos de
nada.
Era meio de semana e se estava
longe dos jogos importantes, provavelmente os ânimos estavam desmaiados ou num
compasso de espera qualquer, um tempo de defasagem, um intervalo entre grandes
acontecimentos.
Já era um botequim sem gritarias
de futebol. E por um tira-gosto, me mandei pra outra ponta do balcão que já não
é de mármore, mas de aço inoxidável.
Antes que chegasse ao torresmo ou
à azeitona desejada, cortou uma voz lá do fundo, quebrando silêncio:
– Você pra falar de Zico, tem que
lavar a boca com álcool antes.
Para saber mais sobre João
Antonio, acessar:
http://www.releituras.com/jantonio_menu.asp
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