No “Dia de Clarice Lispector”, Literatura na
Arquibancada destaca mais um texto dela sobre o futebol. No post anterior o
professor Leocádio Araújo menciona uma crônica em que ela escreve ao jornalista
Armando Nogueira, companheiro de página no Jornal
do Brasil, em 1968.
O texto “Armando Nogueira, futebol e eu,
coitada”, foi publicado no JB no dia 30 de março de 1968, mas também pode ser
lido em um dos diversos livros de Clarice, “A descoberta do mundo” (Editora Rocco,
1984).
O livro reúne crônicas de Clarice Lispector publicadas aos sábados, no
Caderno B, do Jornal do Brasil,
entre agosto de 1967 e dezembro de 1973.
Na crônica, Clarice revela ser torcedora do
Botafogo, clube também chamado de “Estrela Solitária”.
Parece ironia que uma
das grandes obras de Clarice tenha recebido o título de “A hora da estrela” (Editora
Rocco, 1977) embora neste livro o futebol não tenha qualquer menção.
Clarice voltaria ao tema futebol, de maneira
transversal, no conto “A procura de uma dignidade”, parte do livro “Laços de
Família” (Editora Rocco, 1960).
O cenário da passagem, o estádio do Maracanã
que ela confessa ter visitado muito pouco, no texto dedicado a Armando
Nogueira:
“A Srª Jorge B. Xavier simplesmente não saberia dizer como entrara. Por
algum portão principal não fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora, ter entrado
por uma espécie de estreita abertura em meio a escombros de construção, como se
tivesse entrado de esguelha por um buraco feito só para ela. O fato é que
quando viu já estava dentro.
E quando viu percebeu que estava muito, muito dentro. Andava interminavelmente
pelos subterrâneos do estádio de futebol do Maracanã, ou, pelo menos,
pareceram-lhe cavernas estreitas que davam para salas fechadas, e quando se
abriam as salas só havia janelas que davam para o estádio. Este, àquela hora
torradamente deserto, reverberava ao extremo sol dum calor inusitado que estava
acontecendo naquele dia de pleno inverno”.
Crônica:
“Armando Nogueira, futebol e eu,
coitada”
E o título sairia muito maior, só
que não caberia numa única linha. Não leio todos os dias Armando Nogueira –
embora todos os dias dê pelo menos uma espiada rápida – porque “meu futebol”
não dá para entender tudo. Se bem que Armando escreve tão bonito (não digo
apenas “bem”), que às vezes, atrapalhada com a parte técnica de sua crônica,
leio só pelo bonito. E deve ser numa das crônicas que me escaparam que saiu uma
frase citada pelo Correio da Manhã,
entre frases de Robert Kennedy, Fernandel, Arthur Schlesinger, Geraldine
Chaplin, Tristão de Athayde e vários outros, e que me leram, por telefone.
Armando dizia: “De bom grado eu trocaria a vitória de meu time num grande jogo
por uma crônica...” e aí vem o surpreendente: continua dizendo que trocaria
tudo isso por uma crônica minha sobre futebol.
Meu primeiro impulso foi o de uma
vingança carinhosa: dizer aqui que trocaria muita coisa que me vale muito por
uma crônica de Armando Nogueira sobre digamos a vida. Aliás, meu primeiro
impulso, já sem vingança, continua: desafio você, Armando Nogueira, a perder o
pudor e escrever sobre a vida e você mesmo, o que significaria a mesma coisa.
Mas, se seu time é Botafogo, não
posso perdoar que você trocasse, mesmo por brincadeira, uma vitória dele nem
por um meu romance inteiro sobre futebol.
Deixe eu lhe contar minhas
relações com futebol, que justificam o coitada
do título. Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno
maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência
ao excessivo. É o seguinte: não me é fácil tomar partido em futebol – mas como
poderia eu me isentar a tal ponto da vida do Brasil? – porque tenho um filho
Botafogo e outro Flamengo. E sinto que estou traindo o filho Flamengo. Embora a
culpa não seja toda minha, e aí vem uma queixa contra meu filho: ele também era
Botafogo, e sem mais nem menos, talvez só para agradar o pai, resolveu um dia
passar para o Flamengo. Já então era tarde demais para eu resolver, mesmo com
esforço, não ser de nenhum partido: eu tinha me dado toda ao Botafogo,
inclusive dado a ele minha ignorância apaixonada por futebol. Digo “ignorância
apaixonada” porque sinto que eu poderia vir um dia apaixonadamente a entender
de futebol.
E agora vou contar o pior: fora
as vezes que vi por televisão, só assisti a um jogo de futebol na vida, quero
dizer, de corpo presente. Sinto que isso é tão errado como se eu fosse uma
brasileira errada.
O jogo qual era? Sei que era
Botafogo, mas não me lembro contra quem. Quem estava comigo não despregava os
olhos do campo, como eu, mas entendia tudo. E eu de vez em quando, mesmo
sentindo que estava incomodando, não me continha e fazia perguntas. As quais
eram respondidas com a maior pressa e resumo para eu não continuar a
interromper.
Não, não imagine que vou dizer
que futebol é um verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte,
como de gladiadores. E eu – provavelmente coitada de novo – tinha a impressão
de que a luta só não saía das regras do jogo e se tornava sangrenta porque um
juiz vigiava, não deixava, e mandaria para fora de campo quem como eu faria, se
jogasse (!). Bem, por mais amor que eu tivesse por futebol, jamais me ocorreria
jogar...Ia preferir balé mesmo. Mas futebol parecer-se com balé? O futebol tem
uma beleza própria dos movimentos que não precisa de comparações.
Quanto a assistir por televisão,
meu filho botafoguense assiste comigo. E quando faço perguntas, provavelmente
bem tolas como leiga que sou, ele responde com uma mistura de impaciência
piedosa que se transforma depois em paciência quase mal controlada, e alguma
ternura pela mãe que, se sabe outras coisas, é obrigada a valer-se do filho
para essas lições. Também ele responde bem rápido, para não perder os lances do
jogo. E se continuo de vez em quando a perguntar, termina dizendo embora sem
cólera: ah, mamãe, você não entende mesmo disso, não adianta.
O que me humilha. Então, na minha
avidez por participar de tudo, logo de futebol que é Brasil, eu não vou
entender jamais? E quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não,
fico desanimada com minha pequenez. Sou muito ambiciosa e voraz para admitir
com tranqüilidade uma não participação do que representa vida. Mas sinto que
não desisti. Quanto a futebol, um dia entenderei mais. Nem que seja, se eu
viver até lá, quando eu for velhinha e já andando devagar. Ou você acha que não
vale a pena ser uma velhinha dessas modernas que tantas vezes, por puro
preconceito imperdoável nosso, chega à beira do ridículo por se interessar pelo
que já devia ser um passado? É que, e não só em futebol, porém em muitas coisas
mais, eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e
alguma partezinha do futuro.
E agora repito meu desafio
amigável: escreva sobre a vida, o que significaria você na vida. (Se não fosse
cronista de futebol, você de qualquer modo seria escritor.) Não importa que,
nessa coluna que peço, você inicie pela porta do futebol: facilitaria você
quebrar o pudor de falar diretamente. E mais, para facilitar: deixo você
escrever uma crônica inteira sobre o que
o futebol significa para você, pessoalmente, e não só como esporte, o que
terminaria revelando o que você sente em relação à vida.
O tema é geral demais, para quem
está habituado a uma especialização? Mas é que me parece que você não conhece suas
próprias habilidades: seu modo de escrever me garante que você poderia escrever
sobre inúmeras coisas. Avise-me quando você resolver responder a meu desafio,
pois, como lhe disse, não é todos os dias que leio você, apesar de ter um
verdadeiro gosto em ser sua colega no mesmo jornal. Estou esperando.
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Para saber mais sobre Clarice Lispector e a programação do "Dia de Clarice Lispector", acessar:
www.claricelispector.com.br
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