A Cesar o que é de
Cesar
É fato: tenho problemas com essa época de final
de ano. Não gosto dessas confraternizações forçadas, amigo secreto com quem não
é seu amigo, votos de felicidades e sucesso de quem te apunhalou pelas costas
durante os últimos 12 meses e, mais cruel, a necessidade de se fazer balanços.
Tudo bem que o ano fiscal acaba em dezembro, mas todo mundo resolve fazer
retrospectos, cenas dos melhores momentos, balanços de todas as ordens,
homenagens e outros que tais. E aí, chega no dia 1 de janeiro vem aquele
rosário de promessas de ano novo que quase nunca são cumpridas. Mas isso é um
problema meu.
Este ano as coisas parecem ser um pouco
diferentes. Não montei árvore de natal em casa… pura falta de tempo. Em pleno
dia 19 de dezembro estou no Rio de Janeiro coletando dados da minha pesquisa,
mesmo sob protestos da minha família que me queria em almoços, comemorações,
confraternizações… Fazer o que! Ossos do orifício! E aproveitando mais uma
passagem pela Cidade Maravilhosa compareci à entrega do Prêmio Brasil Olímpico
2011. Festa bonita para quem merece todas as homenagens: os atletas! O tema
desse ano foi A Jornada do Atleta. E como em anos anteriores foram homenageados
todos os atletas que mais se destacaram em suas modalidades, bem como um técnico
de modalidade individual e outro de coletiva.
![]() |
Fabiana Murer |
Anunciado desde o começo da cerimônia o título
de melhores de ano geral, um homem e uma mulher, ficou para o final, como era
de se esperar. Só lamento que até na entrega de prêmio por mérito só haja uma
colocação. Olhando para o trabalho e esforço de cada um minha vontade era de
atribuir outros vários prêmios àqueles que se destacaram, não apenas por seus
resultados, mas pelo “conjunto da obra”, quero dizer superação de adversidades,
dificuldades, fossem elas da natureza que fossem. Afinal, cada um ali, a seu
modo, do seu jeito, carrega as características do herói. Foram para a grande
final quatro atletas incontestáveis: Fabiana Murer e Fabiana Beltrame, Emanoel
e Cesar Cielo. Todos os quatro escreveram algumas linhas de façanhas esportivas
neste ano. Todos eles realizaram conquistas internacionais elevando o esporte
brasileiro alguns degraus acima do patamar anterior.
![]() |
Fabiana Beltrame |
Isso não é pouco para quem viu a primeira
medalha de ouro em uma modalidade feminina individual ser conquistada apenas em
2008 ou ainda quebrar a hegemonia norte-americana e australiana em provas
tradicionalíssimas como a natação. E, lamentando por Emanuel e Fabiana
Beltrame, assisti a coroação de Fabiana Murer e Cesar Cielo como os melhores do
ano. Claro que isso não foi uma grande surpresa por conta dos feitos desses
dois grandes atletas. O que surpreendeu foi o que cada um teve a dizer depois
de apresentados os resultados.
Fabiana não me pareceu surpresa. Já havia
conquistado esse prêmio no ano passado e sua trajetória vencedora desse ano
confirmou seu favoritismo. Agradeceu a todos, pessoas físicas e jurídicas, e
saiu prometendo empenho para chegar a uma boa colocação nos Jogos Olímpicos de
Londres, já no ano que vem.
Na seqüência Cesar Cielo começou agradecendo
pelo prêmio e disse ter tentado várias vezes escrever algo para falar naquele
momento, mas nada pareceu expressar completamente tudo o que ele passou no ano
de 2011. A emoção o fez calar. É muito difícil dominar a voz quando as lágrimas
correm para se chegar primeiro.
Nós que acompanhamos o esporte sabemos
exatamente ao que Cesão se referia. Algumas semanas antes do mundial de natação
em julho, um exame flagrou uma substância proibida na sua urina, levando-o a
ser advertido e a ter que ser submetido a uma corte internacional que avaliou
se a substância fora usada de forma intencional ou não.
Naquelas semanas de junho de 2011 vi de tudo
pelos meios de comunicação, mais ou menos como aconteceu com a decisão de
Santos e Barcelona. Observei experts dando veredictos duvidosos, corneteiros
avaliando a relação substância X performance como doutores na matéria e também
vi alguns profissionais, que de alguma forma, em algum momento tiveram contato
com Cesar tentado prestar solidariedade e apoio, ainda que apenas moral. E após
a confirmação do veredito Cielo foi para a piscina e conquistou aquilo que lhe
era devido, mostrando ao mundo o profissionalismo no qual se fundamenta sua
carreira, agindo com a maturidade e determinação de um sábio.
As lágrimas de hoje certamente estavam guardadas
desde lá. Após o resultado do tribunal não havia tempo para elaborações, nem
elucubrações. Por uma questão de honra era preciso mostrar dentro da piscina
que aquilo tudo não passava de uma armadilha do próprio sistema, que muito bem
poderia ter acabado com a sua carreira. E com a convicção de que nada havia
sido feito de errado, a vitória e as medalhas se incumbiram de por as coisas em
seus devidos lugares… aparentemente. Quem alguma vez na vida passou pelo
constrangimento de ser acusado por um crime não cometido sabe o que Cielo
sentiu naquelas semanas. A injustiça apunhala os sensíveis, é uma sangria que
não estanca prontamente e como uma dor profunda, mesmo que diagnosticada a sua
cura, ela ainda deixa as marcas do efeito moral mobilizado pela exposição
pública e pela necessidade de se provar inocência. Ainda que a lei indique que
somos todos inocentes até que se prove o contrário, temos assistido com
freqüência nos últimos tempos o quanto de recursos e energia somos obrigados a
mobilizar não apenas para nos defender de uma injustiça, mas também para provar
nossa idoneidade construída com o trabalho árduo de muitos anos.
Claro ficou para nós, que estávamos assistindo a
tudo, quanto choro e quanta angústia Cesar Cielo teve que engolir em 2011 para
enfrentar as tantas provas, dentro e fora da piscina. Para mim o prêmio dele
não foi apenas pelas medalhas e títulos esportivos conquistados. Foi antes de
tudo, por sua batalha para se mostrar um atleta limpo e determinado. Que
trabalha arduamente para chegar às marcas que tem e o faz com o espírito do
artesão que a cada dia lapida um pouco mais sua peça buscando a perfeição. E
consciente de seu papel e competência faz isso à exaustão porque quer estar
entre os melhores, sem precisar fazer uso de meios ilícitos ou imorais. E sem
ter vergonha de admitir que é um dos melhores do mundo.
Ao final de tudo Cesar encerrou seu discurso
dizendo que aquele troféu era o carinho que ele precisa receber para mostrar
que ele estava de volta.
Desculpe te corrigir, Cesão. Como é que você
pode estar de volta se você nunca se foi? Posso imaginar que seu coração já
deva estar tranqüilo agora que tudo acabou, que o ano chegou ao fim, que seus
êxitos foram coroados com os prêmios merecidos pelo seu trabalho, que você está
partindo com sua família para desfrutar de férias mais do que merecidas, mas
principalmente porque sua inocência foi reconhecida e premiada.
Ah… como eu gostaria de ver outros Cesões no
esporte brasileiro, com essa nobreza de caráter, com esse amor pelo trabalho e
com essa determinação em ser melhor a cada dia.
Nessa noite nenhuma outra frase seria mais
apropriada: a Cesar o que é de Cesar, ou seja, o direito a quem tem, e não a
quem só o deseja. Parabéns Cesão. Que esse ano também possa te trazer boas
lembranças por tudo aquilo que te foi possível aprender.
Sobre Katia Rubio:
Professora associada
da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, orientadora
nos programas de Pós-graduação da EEFE-USP e FE-USP. Escreveu e organizou 15
livros acadêmicos nos últimos 10 anos na área de Psicologia do Esporte e Estudos
Olímpicos abordando os temas psicologia do esporte, estudos olímpicos,
psicologia social do esporte, psicologia do esporte aplicada e esporte e
cultura. É também bacharel em Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social
Casper Líbero (1983) e Psicologia na PUC-SP (1995). Coordena atualmente o Centro de Estudos Socioculturais do
Movimento Humano da EEFE-USP e foi presidente da Associação Brasileira de
Psicologia do Esporte entre os anos de 2005 a 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário