Após a recente conquista
do Mundial Interclubes contra o Santos, a equipe do Barcelona nunca antes foi
tão falada no Brasil. Badalada por todos, gera polêmica entre os “especialistas”
de plantão que começaram a duvidar da própria excelência do futebol praticado
pelos brasileiros. Afinal, somos ou não os melhores do mundo, perguntam todos
eles.
Para tentar
entender um pouco mais sobre esse clube (muito mais do que uma simples equipe
de futebol), um colaborador freqüente do Literatura na Arquibancada, o
jornalista Hélio Alcântara nos sugere a leitura de um livro que teve enorme
repercussão quando foi lançado em 2005: “Como o futebol explica o mundo”
(Editora Jorge Zahar). Em um dos capítulos escritos pelo jornalista Franklin
Foer, “O discreto charme do nacionalismo burguês”, dedicado ao Barcelona,
podemos compreender melhor as razões de o clube catalão encantar não
apenas dentro dos gramados e ainda compreender a enorme rivalidade existente
entre o Barça e o Real Madrid.
Antes do referido texto veja a sinopse dessa
obra importantíssima para a literatura esportiva mundial.
SINOPSE
O futebol é mais
do que um esporte, ou mesmo um modo de vida; abrange questões complexas que
ultrapassam a arte do jogo. Envolve interesses reais – capazes de arruinar
regimes políticos e deflagrar movimentos de libertação. Os clubes de futebol
espelham classes sociais e ideologias políticas, e freqüentemente inspiram uma
devoção mais intensa que as religiões.
Para realizar esse amplo e perspicaz trabalho de reportagem, Franklin Foer
viajou o mundo – da Itália ao Irã, do Brasil à Bósnia, analisando o intercâmbio
entre o futebol e a nova economia global. E acabou por derrubar mitos, ao
verificar que em vez de destruir as culturas locais, como preconizava a
esquerda, a globalização deu nova vida ao tribalismo, e que, longe de promover
o triunfo do capitalismo apregoado pela direita, fortaleceu a corrupção.
Investigando os bastidores desse esporte, Foer apresenta uma vasta e por vezes
quase inverossímil galeria de personagens: um hooligan inglês, filho de
uma judia com um nazista, que devotou a vida à violência; mulheres que
freqüentam os estádios iranianos; os cartolas do futebol brasileiro; uma
torcida organizada sérvia que se transformou em brutal unidade paramilitar.
As histórias
colecionadas – extravagantes, violentas, engraçadas, trágicas – ilustram desde
o choque de civilizações à economia internacional e revelam como o futebol e
seus fiéis seguidores podem expor as mazelas de uma sociedade, sejam elas a
pobreza, o anti-semitismo ou o fanatismo religioso. Original, inteligente,
escrito com paixão e humor, o livro nos ajuda a compreender nossa turbulenta
época.
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Miguel Primo de Rivera y Orbaneja, militar e ditador espanhol, fundador da organização fascista Union Patriótica, inspiradora da União Nacional portuguesa. Primo de Rivera, na década de 1920, promoveu um golpe e tomou o poder na Espanha, governando o país entre 1923 e 1930. Além de proibir a língua e a bandeira catalã, o general fechou o estádio do FC Barcelona depois de ouvir seus torcedores cantarem o hino da Catalunha. |
Trecho do capítulo “O discreto charme do nacionalismo burguês”
“(...) Havia (...) uma
importante diferença entre as atitudes de Franco e as de seu antecessor. Primo de Rivera reagira ao Barça
de modo furioso porque era um caudilho
clássico, o ditador medíocre que esmagava
qualquer dissidente capaz de ameaçar seu frágil poder. Já para Franco a luta contra o Barça assumiu a forma
de um combate pessoal de natureza épica. No nível político mais óbvio,
ele tinha boas razões para punir os
devotados torcedores do clube. A Catalunha havia sustentado por mais
tempo a oposição ao golpe. Os habitantes de
Barcelona, após anos de contenda industrial pré-guerra civil, tinham se tornado os Henry Fords da construção de barricadas. Embora partes da cidade recebessem
Franco de braços abertos, muitos de seus moradores desenvolveram a guerra urbana com um apetite que nem Che Guevara
conseguiria igualar. Franco cobrou um
preço por essa resistência. Quando a cidade caiu, ele mandou matar um
sem-número de seus oponentes e os
enterrou numa cova coletiva no morro Montjuic, onde futuramente se construiria
o estádio olímpico.
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Após o golpe que colocou o General Francisco Franco no poder (foto), a língua e as tradições da nação catalã foram completamente abolidas. Torcer pelo Barcelona se tornou sinônimo de lutar pela liberdade e pela causa catalã. |
Mas havia outra razão, igualmente
importante, para o ódio que Franco devotava ao Barça. O
Generalíssimo acompanhava obsessivamente o esporte e, de modo mais específico, o
rival do Barça, o Real Madrid. Era capaz de
citar de cabeça as escalações do Real de décadas anteriores e mandava
anunciar que descansava em seu palácio
acompanhando o jogo da semana pela televisão. (Não por coincidência, a
TV estatal reservava ao Real Madrid, em suas transmissões semanais, um espaço
muito maior que o de qualquer outro time.)
Quando assistia aos jogos, ele até arriscava
um palpite sobre os resultados. Franco gostava de jogar numa loteria estatal que lhe permitia fazer
apostas no futebol.
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"Mais que um clube, em catalão". |
Franco levou sua vingança pessoal
contra o Barça às últimas conseqüências. Manuel Vasquez Montalbán escreveu:
"As tropas de ocupação de Franco entraram na cidade. A quarta organização a ser expurgada, depois de comunistas,
anarquistas e separatistas, era o Barcelona Football Club." No início dos
três anos da revolta de Franco, a milícia fascista prendeu e executou o
presidente do Barça, Josep Sunyol, de
orientação esquerdista, quando ele passava de carro pelas colinas de Guadarrama em visita aos soldados catalães que defendiam Madri, cercada por tropas de
direita.
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Josep Sunyoli i Garriga, político espanhol, de ideologia nacionalista catalã e 22º presidente do Barcelona, entre 1935 e 1936. |
Quando os soldados de Franco realizaram
um ataque final para conquistar a insubordinada Catalunha, bombardearam o
prédio que abrigava os troféus do clube. Depois de
demolirem as instalações do Barça, os franquistas tentaram destituir o clube
de sua identidade. O regime insistiu em mudar o nome
de "Football Club Barcelona" para "Club de
Football Barcelona" - não apenas uma particularidade estética, mas a
tradução desse nome para o castelhano. Também insistiu em excluir a bandeira
catalã do escudo do time. E isso foi somente o começo.
Para supervisionar a transformação ideológica do clube, o
regime impôs um novo presidente. Ele devia ser bem adequado
para o cargo. Durante a guerra, fora capitão da "Divisão
Antimarxista" da guarda civil. No Barça, ele mantinha cuidadosamente
copiosas fichas policiais de todas as pessoas envolvidas com o clube, de modo a
poder importunar e solapar quaisquer diretores que
demonstrassem simpatias nacionalistas latentes.

Nos primeiros anos da era Franco, um evento
se destaca nos livros de história. Em 1943, o Barça
enfrentou o Real Madrid pelas semifinais da Copa Generalíssimo
Franco. Momentos antes do jogo, o diretor de segurança do Estado entrou no
vestiário do Barcelona - uma cena cultuada em Barça, a
magistral história do clube escrita pelo jornalista Jimmy Burn. Ele lembrou
aos jogadores que muitos deles tinham acabado de retornar à
Espanha, de seu exílio em tempo de guerra, graças a uma
anistia que perdoava sua fuga. "Não se esqueçam de que
alguns de vocês só estão jogando pela generosidade de um regime que
lhes perdoou a falta de patriotismo." Naquela época de
repressão, não foi difícil entender o conselho. O Barça perdeu por 11 X 1,uma das maiores derrotas da história
do clube.

Esse foi o primeiro de muitos favores
prestados pelo regime ao Real Madrid, que pareceu retribuir
a afeição construindo seu novo estádio na Avenida Generalíssmo
Franco. Segundo alguns, o governo deu ao Real uma ajuda decisiva
na contratação do melhor jogador dos anos 1950, o argentino Alfredo di
Stefano, embora o Barça já tivesse feito um acordo com ele.
Quando o Real se sagrava campeão, Franco lhe concedia medalhas e
honrarias não oferecidas a outros times vencedores.
Paul Preston, biógrafo do caudilho, escreveu: "Franco
via as vitórias do Real Madrid e da seleção nacional espanhola como, de
alguma forma, suas." Tudo isso é fato. Mas há um aspecto que não se
encaixa exatamente na conspiração anti-Barça sustentada pelos
catalães. Um detalhe importante desmente isso. Nos primeiros anos da era
Franco, o Barça teve uma de suas melhores temporadas da história.
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Alfredo Di Stéfano: ídolo máximo no Real Madrid, começou com a camisa do Barcelona, Espanha. |
É um paradoxo - repressão e triunfo -
que leva a uma das questões mais espinhosas na história
política do esporte. Umberto Eco colocou-a desta maneira: "É
possível ocorrer uma revolução num domingo de futebol?" Para o Barça,
esse assunto é especialmente desconfortável. Seus torcedores
gostam de se gabar de que seu estádio constituía um espaço em
que podiam dar vazão ao ódio que sentiam pelo regime.
Estimulados por cem mil pessoas cantando em uníssono, com a
segurança de sua presença numérica, os torcedores aproveitavam a oportunidade
para gritarem coisas que não podiam ser ditas, mesmo
que furtivamente, na rua ou num café. Esse é um fenômeno
bastante comum. Há uma longa história de movimentos de resistência
inflamando-se num estádio de futebol. Na Revolução do Estrela
Vermelha, Draza, Krle e outros hooligans de Belgrado
ajudaram a derrubar Slobo-dan Milosevic. As comemorações pela
classificação da Romênia à Copa do Mundo de 1990 se espalharam
pelas praças de Bucareste, culminando num grupo de atiradores
apontando seus rifles para o ditador Nicolae Ceausescu e sua mulher. O
movimento que derrubou o ditador paraguaio Alfredo
Stroessner também teve seu ponto de partida no esporte.

Mas quando os torcedores do Barça
enfatizam o espírito subversivo do Camp Nou não conseguem
explicar por que Franco simplesmente não o esmagou. É claro que ele poderia ter
feito isso com facilidade. Governava um eficiente
Estado policial em que tanto os trens quanto os grandes inquisidores
funcionavam a tempo e a hora. Para esmagar o Barça, como Primo de Rivera tinha
feito nos anos 1920, bastariam alguns soldados. Mas ele pôs de lado essa opção
e preferiu deixar os adversários gritarem suas obscenidades. Franco nunca
justificou explicitamente sua política de tolerância. Mas seu objetivo
era bastante claro: deixar que o povo catalão canalizasse suas energias
políticas num passatempo inofensivo.

Se o Barça possibilitava à Catalunha
desabafar, esse arranjo acabou se revelando conveniente para todos os
envolvidos. Franco nunca enfrentou uma oposição séria por
parte dos catalães. Diferentemente dos bascos, a outra
minoria lingüística perseguida pelo regime franquista, os catalães nunca se
juntaram às frentes de libertação, nem seqüestraram
presidentes de bancos de Madri, nem detonaram bombas em
estações de ônibus. E os torcedores do Barça, apesar de todo o
barulho no Camp Nou, jamais se opuseram seriamente aos apologistas de Franco
que dirigiam o clube. Embora os catalães se mantivessem de
cabeça baixa, eles tocaram em frente os negócios. A
economia nacionalista de Franco, que incluía subsídios e tarifas,
produziu um grande boom industrial na área metropolitana de Barcelona.
Imigrantes do sul da Espanha, aos milhares nos anos 1950 e
1960, foram trabalhar nas fábricas da região. O novo esforço
industrial e o bem-estar concomitante ajudaram a afastar das mentes
a opressão e as memórias dos massacres.
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Bandeira da Catalunha |
Os catalães têm uma autodescrição que
explica esse instinto de "tocar o barco": gostam de dizer que possuem
uma qualidade nacional chamada seny, palavra que se traduz como algo
entre o pragmatismo e a sagacidade. É uma herança de séculos como mercadores do Mediterrâneo, a aversão do negociante à
confusão. (Um exemplo clássico de seny: os
catalães insistem em que sua língua seja ensinada nas
universidades e usada nos sinais de trânsito. Ela pode ser vista por toda
parte, menos nos classificados de imóveis de muitos jornais em catalão.
O nacionalismo não deve jamais atrapalhar os negócios.) Nessa autodescrição, os
catalães também admitem possuir um yin para
contrabalançar o yang do seny: eles têm outra característica nacional chamada rauxa, uma
tendência a surtos de violência. Foi essa característica que impeliu a
Catalunha a lutar de forma tão determinada durante a Guerra Civil espanhola e
a tornou tão turbulenta nos anos anteriores.

Fosse esse ou não o desejo de Franco,
o Barça ajudou a manter o seny e o rauxa dos catalães num estado
de equilíbrio confortável. Um jornalista esportivo me
contou uma parábola que ilustra esse fato. Dois criminosos
trancafiados numa prisão de Franco realizam uma fuga perfeitamente
planejada. Coordenam a ação de modo a poderem assistir ao
jogo do Barça com o Real Madrid no Camp Nou. Por força da boa
sorte, os fugitivos presenciam a vitória do seu Barça. Agora têm
a liberdade e o triunfo. Dali em diante, bastava seguir o
roteiro estabelecido em dezenas de filmes policiais e pegar a estrada.
Mas eles desempenhavam seus papéis como homens da Catalunha,
não como atores de Hollywood: curados de seu rauxa pelo
Barça, eles retornam ao presídio onde tinham sofrido por tanto
tempo. Procuram um guarda e se entregam."
Sobre o autor:
FRANKLIN
FOER é redator do New Republic e colaborador assíduo da revista Slate.
Seus textos já foram publicados em diversos outros órgãos de imprensa, como o New
York Times e o Wall Street Journal.