Um dia, o escritor mineiro Paulo Mendes Campos, fervoroso
torcedor do Botafogo carioca, decidiu aposentar-se das arquibancadas dos
estádios. Mas não poderia fazer isso sem deixar um texto magnífico que só mesmo
ele, um dos maiores nomes da literatura brasileira poderia fazer.
Sorte
nossa que, no ano 2.000, a Editora Civilização Brasileira, publicou O gol é necessário — Crônicas esportivas
– com obras primas reunidas por
Flávio Pinheiro.
O
texto abaixo faz parte da coletânea organizada por Ricardo Ramos, em “A palavra
é...futebol” (Editora Scipione, 1990), um ano antes da morte do escritor
mineiro.
Eu devia ou pelo menos merecia estar aposentado. Mas a ideia
sombria da invalidez, e não do ócio com vivacidade, orientou os criadores do
instituto de aposentadoria.
Deu-se que um dia, há três anos, vislumbrei de súbito que
uma aposentadoria especial estava ao alcance de minha mão. Foi uma coisa
drástica mas lúcida: exonerei-me do futebol. Descobri num relance que eu somava
trinta e cinco anos de futebol e podia muito bem fazer outra coisa nos fins de
semana. Pensei: se em trinta e cinco anos ainda não vi o futebol, é porque não
tenho olhos para vê-lo. Sim, já vi o futebol. Já vi, vivi, sofri e morri o
futebol. Valeu muitíssimo a pena e o prazer, mas não tinha sentido me perder no
tráfego de sábado e domingo a fim de presenciar do alto da arquibancada um
espetáculo já visto e revisto.
Velhos irmãos de opa, sobretudo os de opa alvinegra, ficam
irritados com esse meu raciocínio, que consideram um desvio do entendimento, e
com essa retirada, na qual farejam uma apostasia. Pois vou agüentando as
broncas todas, folheando ainda as páginas esportivas, participando do papo,
assistindo a um ou outro vetê vadio, mas decidido a só comparecer ao estádio em
caso de compulsão emotiva.
Já vi o futebol. Hoje prefiro e só me cabe rever as fitas da
lembrança, onde se gravam os grandes lances do meu aturado exercício de
espectador. Não me cansei do futebol, retirei-me dele, insisto, para preservar
meu patrimônio de memórias, sem o desgaste da ansiedade de quem continua, em
idade canônica, a esperar nas arquibancadas um milagre maior. Já testemunhei os
milagres todos que podiam acontecer em campo. Vi nessa longa temporada lances
magistrais que possivelmente não se repetirão nos dias de minha vida. Conheço
bem a experiência calorosa de sentir-me uno e soldado à alma da multidão, como
conheço o sentimento dramático e animador de estar em confronto com a maioria
ululante.
Sei que as possibilidades de uma partida qualquer são
infinitas; mas não quero disputar mais; não quero mais exercer o pileque
dionisíaco da vitória e nem a ressaca autopunitiva da derrota. Na idade magoada
em que me encontro, torcer como se deve torcer, com o desvario da alma toda,
seria um despudor. Um instinto me aponta o caminho da contemplação e outro
instinto me insinua que, em matéria de contemplação futebolística, minhas
chances de novidade e plenitude são mínimas.
O futebol já me viu. O futebol jogou-me como quis. O que
colhi no campo dá perfeitamente para eu viver mais dez ou vinte anos. No meu
celeiro de craques há vívidas memórias d Leônidas, Zezé Procópio, Romeu,
Zizinho, Didi, Nílton Santos, Pelé, Sastre, Puskas, Nestor Rossi, e Garrincha,
que pode não ser o maior, mas se singulariza por ter demonstrado que a mágica
pode ganhar da lógica. Vi maviosos conjuntos, sinfonicamente arranjados, e vi a
jam-session das improvisações
talentosas. Vi craques nascentes como quem acha um novo amor ou dinheiro
perdido. Vivi até onde pude minhas tardes olímpicas e minhas noites de dança
ritual ao pé do fogo. Retiro-me com a sensação saciada de que cumpri o dever
para com a tribo e não driblei o meu destino.
Meu destino era amar o futebol. Amei-o. Desde criancinha,
quando espiava da lonjura da janela a bola que dançava no capim do clube
aldeão. Até hoje, não é o perfume de aubépine* ou de qualquer outra planta
altiva que me proustianiza**; é o aroma rasteiro da grama que me espacia.
(*)pilriteiro (arbusto ornamental da família das rosáceas),
em francês.
(**) referência ao escritor
francês Marcel Proust e à sua obra Em busca do tempo perdido. Nesse romance o
protagonista relata suas memórias, recriando minuciosamente o passado através
das sensações marcantes, embora triviais.
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