“Futebol de ouvido”, uma crônica
do poeta mineiro Ricardo Aleixo, mostra como o futebol tem tantas maneiras de
ser “sentido”. Ainda mais para ele que, ainda jovem, perdeu praticamente toda a
visão. Tudo aconteceu em 1978 e desde lá sua relação e impressão do futebol
mudou, incrivelmente, para melhor.
O texto de Ricardo Aleixo faz
parte de uma coletânea, “A bola entre palavras”, organizada pelo madrilenho Adolfo
Montejo Navas, que mora no Brasil há 22 anos e que chegou a jogar pelo Real
Madrid quando garoto (1967-1969).
Futebol de ouvido
A oralidade sempre foi muito
importante para mim. E a visualidade também. Minha mãe me contava que desde
pequeno, antes mesmo de aprender a ler, eu gostava de recortar revistas e fazer
pequenas colagens e montagens, movido pelo prazer de jogar com as imagens e as
letras. Já por volta dos 14 anos, no colégio, comecei a me interessar pelas
artes plásticas, sem contudo considerar-me nem mesmo um candidato a artista.
Tal coisa nunca me passou pela cabeça. Perto dos 17 anos foi que, sabe-se lá
por qual motivo, escrevi uma fornada de poemas e compus minha primeira canção.
Nessa época, com efeito, o âmbito artístico que mais me interessava era, de
longe, o futebol.
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Poema-obra de Ricardo Aleixo. |
Eu comecei a jogar bola ali pelos
onze anos, e o aprendizado conformou, também, se posso dizer assim, minhas
primeiras lições de poética. Outra vez comecei pela oralidade. É que, em nossa
casa, ouvíamos muito as transmissões radiofônicas de futebol. Porque minha
família era muito pobre, e as entradas para as partidas eram muito caras. Agora
veja: o futebol entrou em minha vida não exatamente como um esporte, mas como
uma prática narrativa, destacando-se, aqui, o fato de que no Brasil os
locutores de futebol são chamados de narradores – uma impropriedade, uma vez
que só se pode narrar o que efetivamente já ocorreu, não é verdade? Não sou o
único a saber o quanto é impressionante o contraste entre o jogo real, visto na
televisão, que é frio, distante, e sua “narração” por meio do rádio, que é
ardente, fabulada – quando não fabulosa, capaz de abrir para o ouvinte novos
planos perceptivos, em relação ao que se passa no gramado.
O certo é que tudo se transformou
para mim quando ouvi, pela primeira vez, a “narração” de um jogo do Palmeiras.
O locutor falava rápido, muito rápido, rapidíssimo. Bastava, no entanto, que
Ademir da Guia, o camisa 10, assumisse a posse de bola para que a transmissão
se desacelerasse, ou melhor, se tornasse cadenciada. Ainda me lembro das
palavras do locutor/narrador quando isso acontecia: “Ademir, o filho do Divino
Mestre!”, cada sílaba escandida solenemente.
Meu pai me disse, mais de uma
vez, porque o alegrava falar desse assunto, que o grande craque palmeirense era
filho de Domingos da Guia, considerado o criador de um estilo de jogo a que, no
Brasil, damos o nome de “clássico”. Era, o futebol da família Da Guia,
considerado elegante, apolíneo, em oposição ao estilo dionisíaco, mais baseado
na força, ou, ainda – casos bem raros - , no virtuosismo dos grandes
dribladores. O estilo de Ademir sempre fascinou os poetas: Décio Pignatari o
chamou, numa crônica, de “Admirável”, e João Cabral lhe dedicou um belíssimo
poema.
A mim, também, essa alternância
de ritmos ao longo da partida parecia fascinante. Para quem, como eu,
acompanhava o jogo pelo rádio – não tínhamos TV em casa -, a “narração” sugeria
uma música plena de informação verbal. Um dia, tive a sorte de adquirir um
exemplar da revista Placar, na qual constava uma sequência de fotos de Ademir:
ele amortece a bola no peito, ela pousa suavemente no gramado e os dois seguem,
como que atados um ao outro. Bom, recortei as fotos e fui com elas para um dos
muitos terrenos baldios que havia, na época, perto da minha casa, na periferia
de Belo Horizonte. Gastava horas e horas naquilo.
Como resultado, o futebol se
transformou na minha grande aventura estético-existencial de todos os dias, até
os 18 anos, quando, já indeciso entre a arte e o futebol, fui atingido no olho
direito por uma bolada – um “pombo sem asas”, como se diz popularmente -, numa
daquelas reles peladas que, de acordo com Nelson Rodrigues, podem ser “de uma
complexidade shakespeareana”. Perdi parte da visão, depois de 5 cirurgias tão
invasivas e dolorosas quanto inúteis, mas nem isso apaga a maravilha que era
tentar ser, naqueles primeiros anos da década de 1970, um aprendiz de
poeta-camisa 10.
Sobre Ricardo Aleixo:
Ricardo Aleixo, nasceu em 1960, em Belo
Horizonte, Minas Gerais. É torcedor do América mineiro. Tema recorrente
em sua obra poética, o futebol foi sua mais prazerosa atividade até 1978,
quando foi atingido no olho direito por uma bolada que lhe roubou quase
totalmente a visão.
Desde 2006 é professor de Design Sonoro na Universidade Fumec. É poeta,
compositor, cantor e performador. Ensaísta, artista visual e sonoro. Consultor
para projetos editoriais em mídia impressa e eletrônica. Co-curador da ZIP/"Zona de
Invenç˜ao Poesia &", ao lado de Chico de Paula. Co-editor da “Coleção
Elixir”, da Tipografia do Zé, junto com Flávio Vignoli. Publicou os livros
“Festim” (1992), “A roda do mundo” (1996 e 2004, com Edimilson de Almeida Pereira),
“Quem faz o quê? (1999), “Trívio” (2001), “A aranha Ariadne” (2003), “Máquina
zero” (2004), “Céu inteiro” (2008) e “Modelos vivos” (2010). Prêmios e outras
distinções: “Prêmio Literatura para todos” (categoria Poesia, 2010); “Prêmio
Bonsucesso” (categorias Melhor espetáculo e Melhor trilha sonora, para
“Quilombos urbanos”, da Cia. SeráQuê?, 2000); “Bolsa para escritores com obras
em fase de conclusão” (Fundação Biblioteca Nacional, 2004, com o projeto do
livro de ensaios “Palavras a olhos vendo: Escritos sobre escritas”, inédito);
“Bolsa Petrobras Cultural”, com o projeto do livro de poemas “Modelos vivos”;
inclusão dos livros “Trívio” e “A roda do mundo”, respectivamente, nos
vestibulares da UNI-BH, de 2002, e da UFMG, de 2004.
Seu blog:
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