Por André Ribeiro
Dia dos mortos, uma data
para muitos cercada de tristeza, recordação, saudades de quem já partiu e nos
deixou por essas terras sem o prazer de suas companhias. Tem gente que não dá a
mínima para a data, achando melhor apenas curtir mais um dia de feriado
nacional. Como há datas para “comemorar” tudo no planeta, o dia dos mortos
existe desde o século II, quando
alguns cristãos passaram a rezar pelos falecidos, visitando os túmulos dos
mártires para rezar pelos que morreram. Mas o que isso tem a ver com um blog
sobre literatura esportiva? É porque para quem não sabe, o feriado de finados
também é conhecido como o dia dos “fieis defuntos”. Continua sem entender?
Então, explico.
Descobri isso por pura curiosidade, pra variar, com aquela pesquisada
básica no google. Quando li, dia do “fiel defunto”, não tive dúvida de, no meu
caso, associar a expressão ao time de coração do meu querido pai, que partiu
desta para melhor há exatos 19 anos. E daí foi um pulo para que as recordações
chegassem trazendo sentimentos antagônicos de alegria e tristeza. Quem, neste
país do futebol, não foi e continua sendo influenciado por alguém de sua
família, principalmente pelo seu pai, para escolher o time pelo qual torcer?
Papai era o que poderia se classificar de “corintiano doente”. Em dia de jogo
do Corinthians em que não pudesse ir ao estádio, trancava-se no quarto com o
radinho de pilha ligado na cabeceira da cama e, deitado, sofria como um pobre
coitado. Era fácil descobrir quando um gol fora marcado porque em segundos ele
abria a porta do quarto e saía correndo e pulando pela casa gritando gol junto
com o narrador do rádio. E não estou falando de dia de clássico, podia ser um
jogo contra o Juventus que a cena seria a mesma.
Com ele, descobri também a paixão pelo futebol. Não do futebol jogado nas
ruas e campos de terra da periferia onde nasci na capital paulistana, e que
para isso não precisei de sua ajuda, mas o futebol espetáculo, aquele das
arquibancadas dos estádios. Desde os meus 7 anos de idade, descobri essa
sensação maravilhosa que todo ser humano deve experimentar um dia, apesar da
violência que se instalou pelos estádios brasileiros. Ele devia saber disso,
claro, pois nunca foi ao estádio sem deixar de me levar junto. Nessa época,
deixamos a periferia para ir morar no bairro do Paraíso, na zona sul
paulistana. Para mim paraíso era estar bem perto do estadio do Pacaembu, local
onde o Corinthians sempre jogava. Domingo sim, domingo não, e as vezes, nas
quartas-feiras a noite, lá estávamos nós, eu e ele, caminhando pela Avenida
Paulista, recém modernizada, em direção ao jogo. Isso mesmo, eu disse
caminhando, porque fazia parte do ritual dele, talvez por pura superstição, ir
e voltar a pé.
Também fazia parte dos seus rituais a estranha mania de chegar ao estádio e
se sentar nas arquibancadas de cimento gelado do Pacaembu, exatamente na linha
do meio de campo. Chegávamos normalmente com duas horas de antecedência, porque
naqueles tempos, final dos anos 1960 e início dos anos 1970, haviam
preliminares sensacionais, e mesmo assim, estivesse alguém sentado onde ele
queria, bastava para ir até o sujeito e pedir para “dar uma chegadinha pra lá”
porque ele queria estar exatamente na linha divisória do campo. Faz tanto
tempo, mas ainda agora consigo sentir o cheiro da grama, da pipoca que passava
pra lá e para cá nas mãos dos vendedores, do gosto doce de uns “canudos”
enrolados com creme que eram um horror, mas que naquele clima, tornavam-se “mágicos”.
Papai morreu jovem, com apenas 62 anos de idade. Não viu sequer o neto
corintiano roxo que ele deixou no ano em que morreu, 1992. Mas pouco antes de
sua morte, já com problemas no coração, e longe dos estádios havia anos, decidi
retribuir esses momentos maravilhosos de minha infância. Ele nunca havia ido ao
estádio do Morumbi, e eu já jornalista esportivo, consegui convencê-lo a ir a
um jogo. Desta vez, era eu quem tinha que segurar suas mãos para que não se
perdesse entre a massa de torcedores enlouquecidos para entrar rapidamente,
pois o jogo já iria começar. Suas mãos tremiam feito às minhas muito tempo
atrás. Jamais esquecerei daquela fração de segundos quando, finalmente,
conseguimos ultrapassar a catraca que dava acesso às arquibancadas. Sem o
empurra empurra tradicional, ele parou seu corpo frágil e magro, respirou
fundo, caminhou alguns passos e parou quando viu a luz do sol refletir no
gramado do estádio. Seus olhos estavam cheio de lágrimas. Não lembro se o
Corinthians ganhou ou perdeu. Só agora me lembro que o mais fiel dos torcedores
não partiu sem antes ir ao estádio com o seu filho. Obrigado meu pai, por tudo.
Que lindo. Que saudade funda do meu também.
ResponderExcluircomo dói teacher...Chorei feito um burro velho quando escrevia...Os cientistas deveriam esquecer os experimentos e os estudos para descobrir o tal do "buraco negro" e se concentrar nesse sentimento que qualquer ser humano tem após perder alguém tão querido, tão fundamental em nossas vidas...Esse sim é o buraco negro...bjs
ResponderExcluirLindo e emocionante !!!!!
ResponderExcluirSentimos mta falta e orgulho dele ...
Muito, muito bonito, André.
ResponderExcluirCaro André. Muito bonito esse seu texto. Vê-se que a relação de vocês sobreviveu à partida dele. Parabéns!
ResponderExcluirAndré, querido. Não tive o prazer de conhecer seu pai, mas vi um pouco dele reistrado em cada palavra, em cada frase. Parabéns. Pelo pai que teve, pelos filhos que tem. Pelo texto impecável e pela coragem para escrevê-lo. Pela curiosidade. Pela delicadeza e complexidade do blog. Não preciso nem dizer que me levou às lágrimas...
ResponderExcluirOi querida Lalá. Bom saber q. vc. está passeando pelo blog. Falta agora mandar algum texto maravilhoso que só vc. sabe escrever. Sobre meu pai, como diz Clarice Lispector, não é a vida, é a "Coisa" que nunca vamos compreender...
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