No próximo
sábado, dia 19 de novembro, Domingos da Guia, um dos maiores craques do futebol
brasileiro, entraria em contagem regressiva para os seus 100 anos de vida. O “Divino Mestre”, apelido que o
consagrou, partiu no dia 18 de maio de 2000. Domingos começou a carreira no
Bangu, passou pelo Vasco da Gama, Nacional do Uruguai, Boca Juniors da
Argentina, Flamengo e Corinthians. Domingos é o único tricampeão sul-americano
jogando por três países diferentes.
Domingos
também fez história com a camisa da seleção brasileira, especialmente, na Copa
de 1938, mundial que também o deixaria marcado para sempre, por conta de um
pênalti que ele teria cometido no jogo decisivo contra os italianos. Por causa
de seu famoso estilo clássico e elegante de jogar, ninguém acreditava que
Domingos fosse capaz de cometer um pênalti tão infantil como o árbitro da
partida marcou. Houve polêmica, reclamação dos dirigentes e torcedores. A
seleção perdia o jogo por 1 a 0 para a Itália, em jogo válido pelas semifinais
da Copa de 1938, quando, aos 17 minutos do segundo tempo, Piola, atacante
italiano enrolou-se com o zagueiro brasileiro e caiu ocasionando o pênalti.
Apesar da
polêmica, Domingos será lembrado neste seu centenário de vida, não por este
momento, mas pelo talento e categoria exibidas enquanto esteve em campo.
Abaixo, os
vários “Domingos” que encantaram o mundo...
Domingos da Guia, por ele mesmo
Sobre ser um predestinado
Nasci assim. As forças maiores determinaram
que haveria de ser um jogador de categoria. Modéstia à parte, realmente fui.
Aos oito anos, quando jogava minhas peladas pelas ruas de Bangu, os jogadores
que vinham dos treinos me viam jogando e apontavam: ‘Ih! Aquele garoto lá tem
jeitinho pra bola. Olha lá que beleza!’ Aos oito anos, já tinha certa
intimidade com o caroço, driblava e passava muito bem. Fui um predestinado.”
(Jornal dos Sports, 06/01/1980)
Sobre a fase do amadorismo
No amadorismo, quando o jogador mudava de
time era o fim do mundo. Ele passava a ser apontado na rua como um miserável
traidor. E havia os exagerados, que cuspiam à sua passagem, num esgar medonho
de nojo. Em suma: mudar de clube era uma coisa mais ignóbil que um adultério.
Aquele que, por qualquer motivo, trocava de camisa, era chamado de ‘borboleta’.
Mas esse nome bonito, lírico, não disfarçava a ofensa mortal. O craque chamado
de ‘borboleta’ rugia de humilhação e de remorso. (Última Hora, 15/06/1957)
Sobre racismo
O jogador negro tem uma série de virtudes
específicas. Em primeiro lugar, é preciso considerar o estímulo profundo de sua
condição racial e em tudo mais, o preconceito de cor. Normalmente, esse
preconceito pode ser disfarçado, atenuado. Mas basta que no decorrer de um
‘match’, ele incorra num ‘foul’ qualquer. Logo, o adversário e a torcida
passarão a vê-lo, não como um ser humano, igual aos demais, mas como ‘o negro’,
o ‘preto’ ou, ainda, o ‘moleque’. É comum ver alguém dizer, em relação ao
craque de cor que, eventualmente, irrita a torcida: ‘Aquele moleque!’ Eu fui
jogador durante vinte anos e me fartei de escutar coisas semelhantes referentes
aos meus companheiros.
Ora, essas manifestações se, por um lado machucam,
constituem, por outro lado, o incentivo de que falei. Ocorre, então, o
seguinte: o jogador procura recuperar-se. Sente, por instinto, que tem meios no
futebol de ascender social e humanamente. Experimenta o prazer, a volúpia de
magnetizar a multidão com seu virtuosismo. Reparem: não lhe basta jogar bem.
Ele quer mais, muito mais. Precisa burilar, enfeitar a jogada, dar na bola o
toque ou o retoque que entusiasma a torcida. Basta ver Didi, com seu extremo
virtuosismo. Se fosse branco não seria um estilista tão perfeito e tão
minucioso. Outro: Leônidas, o ‘Diamante Negro’. A meu ver, sua imaginação é
caracteristicamente racial. (Última Hora, 01/07/1957)
Sobre gostar de curtir a vida
Minha passagem por este mundo tem sido como o
nome que meu pai e minha mãe me deram: uma sucessão de domingos, dia de futebol
e de festa. Ganhei, na década de 30, o máximo que um jogador podia ganhar.
Gastei muito também. Eu, por exemplo, adorava namorar e ir aos cassinos. (Folha
de S. Paulo, 16/01/1994)
Sobre as dificuldades financeiras
Recebi, entre outras coisas, as seguintes:
uma tinturaria, em 1940, à Rua do Lavradio; um armazém em Bangu, onde consegui
comprar 25 casas; em São Paulo, um caminhão e um bar. As responsabilidades
aumentaram, houve a inflação e, sem grande tino comercial, acabei perdendo
tudo. Uma por uma, as casas foram sendo vendidas; apareceu quem quisesse a
tinturaria; o caminhão começou a apresentar defeitos. Então, procurei emprego
para viver. Hoje (junho de 1957), sou inspetor da Cervejaria Rio Claro, que
produz a gostosa ‘Caracu’. Estou satisfeitíssimo e tenho todo o apoio dos meus
chefes’.(Última Hora, 03/06/1957)
Ademir da Guia (na foto ao lado, observando o pai), filho de Domingos,
complementa o final desta história:
Depois de ficar como técnico do Bangu (no
mesmo ano de 1957) ele conseguiu um trabalho na Prefeitura com “Seu Talão Vale
Um Milhão”. Você comprava qualquer coisa, pedia o recibinho e trocava esse
talão para ganhar prêmios. Era uma coisa da Prefeitura para as pessoas pegarem
o recibo das compras. Ele ficou até os 70 anos neste trabalho.
Domingos da Guia, por quem entendia do jogo
Luiz Mendes
Quais foram as lendas? Que ele tinha imã, que
a bola vinha nele, que ele atraía. Em um jogo que ele fez nas Laranjeiras
contra o Fluminense, em 1939, eu me lembro que Carreiro, que era o ponta-esquerda
do Fluminense, quis passar por Domingos e deu um toquezinho por cima dele, mas
Domingos era esperto e puxou a bola de volta pra ele com o calcanhar. E ao
tomar o balãozinho, Domingos devolveu o balãozinho no mesmo lance, e ficou com
a bola. O outro ficou lá atrás dele sem poder fazer nada. Ele fazia também uma
jogada em que vinha de frente para o próprio goleiro e fingia que ia atrasar a
bola, o atacante se mandava, passava por ele, daí Domingos puxava a bola para
frente e saía jogando com um companheiro qualquer. A matada de bola dele, ela
vinha pelo alto, ele parava ela lá em cima.
Ramos de Freitas (cronista uruguaio do jornal
El Día), após ver a vitória por 2 a 0
do Nacional sobre o Rampla Juniors.
Domingos é a perfeição apurada da defesa. É
uma linha na qual se podem enfiar todas as pérolas de elogios que a palavra
escrita tributa ao ‘football’ – e o idioma ainda é curto para isso. Por seu
jogo tão regular, tão espetacular, tão matizado de frases lindas, tão
brilhante. Domingos é de uma classe de homens que quando começa a partida,
obriga a todos a tirar o chapéu e, quando a partida termina, o tipo tirou o
paletó e...todas as peças de vestuário, que decorosamente se pode tirar, no
calor do entusiasmo que o seu jogo produz a milhares de espectadores. Ele
arranca a bola sem nenhum desses recursos violentos e depois de arrancá-la se
dá ao luxo de fazer um passe de ‘ta-te-ti’, que dá prazer até a Torre da
Homenagem (torre que existe no estádio do Nacional). Quando o vê, a Torre, que
não pode aplaudi-lo, lhe sorri pelos quatorze olhos de suas janelinhas e parece
que quer agitar suas asas de cimento para voar até o Paraíso dos Jogadores e
gritar: ‘Vocês que foram craques venham ver!’ ...Na exaltação do meu
entusiasmo, Domingos; eu que não sou fanático por ninguém, que sou um amante do
bom ‘football’ te grito: ‘Tu mereces ser footballer uruguaio! Tira uma carta de
cidadania!’.(Jornal dos Sports, 08/06/1933)
Paulo Amaral (ex-jogador e técnico)
Domingos não abria a boca para reclamar de
ninguém. Ele apenas comunicava: “Não vai nesta”, “espera”, “agora vai nesta”,
“pode deixar comigo”. Orientava. O ponta adversário vinha com a bola dominada,
ele falava: “Não vai nessa, espera”...Nada de gritar. Calmo – muito tranqüilo.
Não vibrava nem se alguém fizesse uma boa jogada ou quando o time fazia um gol,
ele não dava pulos no ar, não levantava o braço, era muito calmo, muito
tranqüilo.
Zizinho (ex-jogador do Flamengo e seleção
brasileira)
Para sentirem o que representava o Da Guia no
futebol brasileiro, quando Flávio Costa reunia os 33 jogadores convocados e
dizia: ‘Aqui estão reunidos os melhores jogadores do país, portanto a fina flor
do futebol brasileiro. Não existem titulares nem reservas’. Então, mandava o
roupeiro distribuir as camisas. Geralmente eram azuis, brancas e verdes. Aí o
Tim, o famoso ‘El Peon’, como o chamavam os argentinos, ‘A Raposa’ como
excelente treinador que foi, o meu saudoso amigo me pegava e dizia: ‘Flávio
pensa que sou trouxa, mas se você não estiver com a camisa da cor da do Da Guia
não está na equipe titular. Se quiser ficar, mete os peitos e disputa a
posição’. Portanto, a camisa do Da Guia nunca era disputada! (Zizinho, O Mestre
Ziza, p. 59)
Ivan Sotter (autor da Enciclopédia do
Futebol, sobre o termo “Domingada”)
Parecia que a mágica de Domingos era fácil de
ser aprendida e executada, tal a sua simplicidade. Driblava na área e saía
soberano. Havia jogadores que, antes de enfrentá-lo, iam logo entregando a
bola. O problema era aqueles que tentavam imitá-lo. Tudo era tão simples, por
que não tentar? Tentavam e se davam mal. Isso é que é uma ‘domingada’: o se dar
mal tentando imitar Domingos. Só é chamada de ‘domingada’ quando a coisa não dá
certo.
Fonte:
O divino mestre – biografia de Domingos da
Guia (Editora Gryphus, 2005)
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