Mia
Couto é mais um ícone da literatura mundial que nunca escondeu sua paixão pelo
futebol: “A partida de futebol é sempre mais que o resultado. O mais
belo num jogo é o que não se converte em pontos de classificação, é aquilo que
escapa ao relatador da rádio”. Esta frase faz parte de seu mais recente livro “Pensageiro
Frequente” que ainda revela os primeiros chutes em sua terra natal, na crônica
“Fintado por um verso”: “No
meu bairro, o futebol era a grande celebração. Preparava-mos para esse momento,
como os crentes se vestem para o dia santo. Aquele domingo era um tempo
infinito. E o campo, aberto num descampado da Muchatazina, era um estádio maior
que o mundo”.
Neste post você poderá ver mais
abaixo uma das crônicas mais famosas do autor moçambicano sobre o tema. Pouco
importa se o futebol jogado na crônica de Mia Couto é aquele que, na Beira,
local onde nasceu em Moçambique, no ano de 1955, é chamado de “matraquilhos”,
que para nós, brasileiros, chamamos de “pebolim” ou ainda de “totó”.
O jogo de criança é apenas um pano de fundo para que Mia
Couto revele os horrores da guerra que vitimou mais de um milhão de pessoas do seu povo.
Poeta de rara sensibilidade e engajado nas causas do seu país, Mia Couto tem em
sua prosa uma forma de não deixar que o passado trágico de Moçambique seja
esquecido. E essa, talvez, seja a razão de tanto escrever: “Nós ainda não fizemos o luto e de repente
Moçambique esqueceu-se, se fores hoje a Moçambique ninguém fala do que se
passou. É uma esponja que passou ali, não há resquícios. E isso não é bom, quer
dizer, isso significa que nós perdemos aquilo que deixou de ser nosso, nós
temos que ter acesso àquela memória. E os escritores podem ter aqui um outro
papel ao escrever, ao abrir portas, ao fazer uma espécie de catarse sobre esse
momento.”
Mia Couto é o pseudônimo de António Emílio Leite Couto,
apelido dado pelo irmão, uma variação de Emílio. É considerado um dos
principais escritores africanos, com livros publicados em diversas línguas por
todo o mundo. Em sua obra é nítida a preocupação de escrever histórias de uma
terra estuprada pelo colonialismo português.
Mia Couto é, enfim, um autor comprometido com as coisas de sua terra,
seu povo e sua cultura. Do lugar em que cresceu, a Beira, um dia escreveu: “Há
lugares que não são apenas sítios onde vivemos. São parte da nossa vida, são a
nossa vida. A cidade onde nascemos é um lugar onde continuamos a nascer. Essa
cidade (que é mais água que terra) somos nós, com as nossas lembranças, as
nossas saudades. E a esperança que aquela seja uma cidade carregada de futuro.”
Mia Couto também
deixou uma verdadeira declaração de amor à terra natal:
A BEIRA
MINHA ÁGUA NATAL
Me recordo da minha cidadezinha como um lugar de infância chapinhada, um lugar onde o próprio tempo transpirava.
O
mar não nos tocava apenas como margem do nosso pequeno mundo.
O
mar vinha de baixo, fluía entre os poros da terra, como um suor imenso.
E
tanto éramos feitos de líquido que ainda hoje eu creio não ter terra-natal.
A
Beira é minha água-natal.
E cada casa era como asa tombada no pântano, se afundando ao peso de sua
própria ousadia de existir. Ser obra de gente ali onde tudo se afunda, é produto de esforço, vitória do homem sobre os regimes do mundo.
Em volta tudo nos lembrava que a cidade não era natural do lugar. Os imensos
arrozais, em redor, vincavam a solidão da urbe. De tanto viver nessa liquidez nunca cuidei de aprender a nadar. Era como se fosse habilidade que deveria aflorar em mim como cauda de girino. E é como se me faltasse hoje competência para navegar entre lembranças desenhadas a linhas de água.
própria ousadia de existir. Ser obra de gente ali onde tudo se afunda, é produto de esforço, vitória do homem sobre os regimes do mundo.
Em volta tudo nos lembrava que a cidade não era natural do lugar. Os imensos
arrozais, em redor, vincavam a solidão da urbe. De tanto viver nessa liquidez nunca cuidei de aprender a nadar. Era como se fosse habilidade que deveria aflorar em mim como cauda de girino. E é como se me faltasse hoje competência para navegar entre lembranças desenhadas a linhas de água.
Na
minha cidade a gente pisava o chão e não sentia estremecimento de macho. Por
baixo do passo não havia senão o breve arrepio, o frágil suspiro.
Porque,
de tenra e deitada, a terra semelhava estar nua.
Assim,
despida, era mulher que se afeiçoava não apenas ao corpo mas a toda a nossa
vida.
Trago
a minha cidade como uma lágrima, uma sobra de mar espreitando a janela da
saudade.
No
texto abaixo, publicado no livro “Cronicando”, Mia Couto, mais uma vez,
regressa à terra natal para falar sobre muito mais do que o futebol jogado em
um brinquedo.
"Nós éramos os do muro,
sentadiços. Os outros corriam os futebóis, dispensavam suores. Enquanto nós,
não. As meninas passavam, com suas batas brancas, pareciam aprendizes de
garças. Os outros perseguiam-nas caçando simpatias. Nós ficávamos no muro,
olhos trincando as sombras femeameninas.
Nosso futebol era ali, na mesa de
matraquilhos do bar Viriato. A mesa de jogo dormia fora do bar, ao dispor do
luar que tombava no pátio. Era tão pesada que nenhum ladrão punha nela sua
cobiça. Os roubadores daqueles tempos tinham dedos tremedrosos, eram gente de
pequeno empreendimento. Naquele pátio do bairro Matacuane ficava o estádio do
nosso encantamento. Era ali que vibravam as nossas multidões quando a pequena
bola de madeira escorrecaía no buraco da baliza. Mas nós, sem idade e com as
raças todas à mistura, só podíamos freqüentar imaginário relvado no intervalo
dos outros. A mesa de matraquilhos era nossa só quase às vezes.
![]() |
Quartel de Matacuane |
No resto, pertencia
as tropas, soldados que abundavam por aqueles lados. O Viriato ficava na
fronteira dos mundos, subúrbio dos subúrbios. Sempre quando há quartéis, os
bairros perdem seus nomes civis. E o nosso lugar era agora chamado Zona do
Quartel. Com o novo nome vieram as prostitutas e encheram os bares com suas
grandes pernas cruzadas. Mesmo em nossos sonhos aquelas pernas se descruzavam
sob lençóis que transpiravam. Por isso, nossos pais já não permitiam que muito
parássemos pelos lados do bar. Os receios deles careciam de fundamento. Nós só
entrávamos no exterior. Lá dentro, apenas nossa curiosidade espreitava.
Mas a brincadeira dos
matraquilhos custava cada vez mais preço. A moeda roubávamos lá em casa
descarteirando eu de meu pai e Nandito não se sabe de onde. A moedinha abria o
momento mágico. A gente metia na ranhura e a máquina expedia suas nove
bolinhas, já tão gastas que coxeavam em cada volta de seus épicos percursos.
Foi quando se deram os casos
chamados para esta estória.
Primeiro acharam graça: apareceu
um dos bonequinhos pintado de preto. O avançado do centro da minha equipa tinha
mudado de raça da noite para a madrugada. Os soldados portugueses, quando
chegaram, fizeram riso e alcunharam o novo matraquilho de Eusébio.
Depois, apareceram mais três
avançados, subitamente transcoloridos. Ainda encontraram piada, anedotaram.
Distribuíram mais nomes: Coluna, Vicente, Matateu. Só o dono do bar é que
ventilou ameaças: se descubro o sacana do pintor, ai de quem!
Um dia a mesa amanheceu com todos
os jogadores de raça negra.
No bar Viriato, bem luso de seu
nome e propriedade, figuravam os matraquilhos mais africanos do mundo. Eu e
Nandito apresentámo-nos bem cedinho, madrugada recém-estreada. Não tocávamos no
jogo, ficamos espectadores. Olhávamos as gotinhas de cacimbo, rebrilhando nas
botas dos bonequinhos.
Até que surgiram os tropas,
barulhosos, donos, chegaram-se aos matraquilhos e trocaram suas admirações.
Dessa vez, ninguém riu. Ao inverso, havia uma raiva partilhada que
multicrescia. De repente, um dos soldados se deu de berrar salivando raivas. Os
outros tentavam de acalmar-lhe as fúrias. Mas nada, o homem se atestara de
ódios. Súbito, retirou do cinto uma pistola e em volta fechou-se o silêncio,
solene. Viriato, era o saloon. E
aquele soldado acenando a pistola era o Clint Eastwood, o Rambo dos tempos.
Quem sabe foi por causa desse estado de maravilhação que o Nandito não ouviu
gritarem quando o soldado louco apontou sobre o guarda-redes da minha equipa. O
tiro soou e o pequeno boneco esvoou, salpicando estilhaços, mais súbitos que o
sangue.
Ainda hoje aquele tiro continua
ressoando em minha vida, junto com esse outro grito que, por engano e um
relâmpago, me pareceu sair do bonequinho alvejado."
Para saber mais sobre Mia Couto, acessar:
Mia, Se eu disser que sou fã, estarei mentindo...
ResponderExcluirSou simplesmente apaixonada pela vida e ideias do Mia.
Senti tanto não ter podido vê-lo quando esteve por aqui.
Show de bola André. Como show é o Arquibancada!
Beijão.