Corinthians, campeão de 1914 |
Um
bate papo com João Paulo Streapco, autor de uma Dissertação
apresentada recentemente ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de
História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. O título de sua tese é “Cego é aquele que só vê a bola” - O
futebol em São Paulo e a formação das principais equipes paulistanas: S. C.
Corinthians Paulista, S. E. Palmeiras e São Paulo F. C.
(1894-1942)
A tese estará disponível para acesso na biblioteca digital da USP
(www.teses.usp.br) a partir da próxima
semana. Caso você queira acessá-la imediatamente em pdf, siga o link abaixo dos
amigos do Ludopédio:
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São Paulo Futebol Clube, no extinto Estádio da Floresta, em 1931. |
Literatura
na Arquibancada:
Por que
escolheu o surgimento dos três grandes clubes de São Paulo
(Corinthians,
Palmeiras e São Paulo) como eixo temático de sua tese?
João Paulo
Streapco:
A pesquisa, em sua origem, se propunha a ser uma pesquisa de
história social do futebol, em São Paulo. Percebíamos a existência de
representações sociais que vinculavam o Corinthians aos grupos populares da
cidade, o Palmeiras à comunidade ítalo-paulistana, em especial aos grupos que
ascenderam socialmente, o São Paulo às elites.
Também, por uma questão metodológica, tivemos que criar
“recortes”, limitar o tamanho da pesquisa, razão pela qual preferi pesquisar
aqueles clubes que possuem o maior número de simpatizantes. É necessário
informar, que ao longo da pesquisa, verificamos que a origem e organização das
comunidades de simpatizantes das três equipes se assemelham, mesmo que seus
simpatizantes não gostem desta afirmação. Novas pesquisas, sobre os demais
clubes de futebol da cidade, podem indicar se possuem estruturas parecidas como
as do “trio-de-ferro”.
L.A.:
Qual a razão
deste título: "Cego é aquele que só vê a bola"?
J.P:
O título deriva de uma crônica de Nelson Rodrigues, intitulada “O
divino delinqüente”, e que foi publicada no livro “À sombra das chuteiras
imortais”. Para Nelson Rodrigues, o futebol apresentava uma “complexidade
shakesperiana” que excedia a bola ou o campo em si. E ao longo da pesquisa, o
que buscamos foi exatamente esta complexidade que existe em torno do futebol e
que simpatizantes e praticantes pouco se atentaram.
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Estádio do Velódromo Paulistano, no início do século 20 |
L.A.:
Qual a
influência de cada um desses clubes, na formação da sociedade paulistana?
J.P:
Os três clubes fazem parte de um contexto histórico, marcado pela
acelerada industrialização e urbanização da cidade, em que uma cultura urbana
paulistana foi criada por seus moradores. Aliás, precisamos lembrar que os
outros clubes que não aparecem neste estudo fazem parte deste processo, também.
E os conflitos entre os grupos que chegavam à cidade, entre aqueles que já
estavam inseridos, entre ricos, classes médias e operários, marcaram a
construção desta cultura urbana paulistana, ainda na primeira metade do século
XX. Neste sentido, o futebol se transformou em um microcosmo da sociedade que
se construía, um espaço ritualizado onde os grupos sociais expunham suas
demandas e se faziam mostrar para os demais grupos e autoridades públicas.
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Associação Atlética das Palmeiras, em 1915. |
L.A.:
Sua tese traz um capítulo sobre a relação entre o futebol de
várzea e o futebol "oficial". O que pretendeu mostrar com isso?
J.P:
As evidências encontradas ao longo da pesquisa sugerem a formação
de um campo profissional de futebol desde as primeiras décadas do século XX, e
não apenas a partir da década de 1930, como sustenta o senso comum. Este campo
profissional que gerava bons lucros para aqueles que o controlavam, entretanto,
só se manteve com o desenvolvimento do futebol praticado nos pequenos clubes
populares dos bairros periféricos ou que margeavam as várzeas da cidade, pois
destes clubes populares saíam os grandes jogadores que atuaram pelo futebol
oficial, desde a década de 1910. Na prática, sobreviveram no futebol
oficial/profissional, aqueles clubes que tinham interesse e sabiam onde
encontrar bons jogadores para a disputa dos campeonatos. Na década de 1910,
esta prática recebia o nome de “cavar” jogadores.
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Palmeiras x Corinthians, em 1921. |
L.A.:
Em seu
estudo, você analisa o preconceito racial existente na sociedade do início do
século 20. Onde e como os clubes analisados em sua tese entram nesta análise?
J.P:
Antes de responder a sua questão, preciso indicar duas situações.
Corinthians e Palmeiras foram fundados em contexto histórico
diferente do contexto de fundação do São Paulo. Os dois primeiros foram
fundados por imigrantes ou filhos de imigrantes para que pudessem praticar o
futebol em 1910 e 1914, respectivamente. O São Paulo, em 1935. Nesse período de
cerca de vinte anos, a comunidade negra da cidade se organizou e passou a
pressionar por mudanças na mentalidade racista da época, o que gerou a
possibilidade de jogadores negros atuarem pelos clubes do futebol oficial/profissional.
Também, os jogadores do futebol oficial passaram a pressionar pela
regularização da atividade profissional de jogador de futebol. Foi nesse
contexto, que os clubes fundados pelas elites paulistanas abandonaram o
futebol, enquanto os clubes fundados por imigrantes começaram a se abrir para
os jogadores negros. Quando o São Paulo foi fundado, e isto vale para o
homônimo São Paulo da Floresta, fundado em 1930, jogadores negros já atuavam
por Corinthians e Portuguesa e foram contratados como profissionais pelas duas
equipes com o nome de São Paulo. O que percebemos com isto, é que o espaço que
se abriu à comunidade negra na estrutura do futebol oficial/profissional que se
organizava naquela época, foi o espaço que Arlei Damo definiu de “pé-de-obra”,
sem possibilidades de ascensão nas hierarquias dos clubes. Embora resistisse a
este processo de abertura à comunidade negra, na década de 1930, na década
seguinte, o Palmeiras já contava com jogadores negros em suas formações.
Equipe do Corinthians, tricampeã de 1930. |
L.A.:
O que
destaca como mais curioso e importante na formação dos três clubes analisados?
J.P:
Os três clubes possuem estruturas organizacionais parecidas.
Roberto Damatta as compara com o formato de um cometa: um núcleo
duro formado por dirigentes de origem elitista e associados de classe média,
enquanto a calda é formada pelos milhões de simpatizantes que consomem o
produto futebol sem nunca colocar os pés dentro dos clubes.
A direção dos clubes não costuma ser democrática e as decisões são
tomadas em reuniões fechadas pelos membros deste chamado núcleo duro.
Todos formaram enormes comunidades de simpatizantes que
compartilham representações sociais específicas, que são ritualizadas e
rememoradas a cada partida disputada e as fundações remetem a um passado mítico
que tem por função solidificar a solidariedade do grupo. Estas representações
sociais indicam que os conflitos sociais vivenciados na cidade de São Paulo, na
primeira metade do século XX, foram agudos e deixaram reflexos nos descendentes
de seus habitantes.
Por fim, a idéia de que a sociedade paulistana não se preocupa com
a própria memória, precisa ser redimensionada, pois o volume de material
disponível para a pesquisa sobre o futebol é muito grande, inclusive nos
clubes. Inclusive, o Corinthians já possui um Memorial bem organizado que
disponibiliza ao pesquisador, todos os documentos e informações solicitados. Os
demais ainda precisam avançar neste sentido.
L.A.:
Seu projeto
de pesquisa levou seis anos para ser concluído. Como foi esse processo? Quais
fontes utilizadas? Quais as dificuldades para o trabalho? Qual é a rotina para
se fazer uma tese bem argumentada?
J.P:
O primeiro passo de toda pesquisa científica é organizar um
projeto que indique um problema, hipóteses de explicação e objetivos que
justifiquem sua realização. No caso de uma pesquisa histórica, o segundo passo
é levantar as fontes documentais. Ao longo dos dois primeiros anos percorremos
os arquivos da cidade, em busca destas fontes e as descobrimos em arquivos
públicos, clubes e coleções particulares formadas desde a década de 1920, por
colecionadores ou familiares de ex-jogadores, dirigentes e jornalistas. No
momento em que fazíamos este trajeto, encontramos simpatizantes dos clubes
estudados, o que permitiu percebermos a existência das representações sociais
já mencionadas e o contato com obras publicadas pelos clubes, que sustentavam
estas idéias. Ainda, percebemos que o volume documental sobre o tema é enorme,
o que realçou aquela idéia da “complexidade shakesperiana” que discutimos
anteriormente. Por que a sociedade paulistana preservou tantos documentos, se
preocupou tanto com a memória de seu futebol? A resposta nos parecia óbvia: por
sua importância para estas populações. A questão era entender como uma
atividade de lazer se transformou em um grande espetáculo ritualizado de
grandes proporções.
A grande vantagem de se realizar uma pesquisa de seis anos de
duração é a possibilidade de amadurecer as idéias, confrontar documentos,
relatos e memórias. Quando ingressei no programa de pós-graduação da FFLCH-USP,
já tinha realizado um vasto levantamento bibliográfico e sabia onde encontrar
as fontes. A maior dificuldade da pesquisa foi organizar o volume de
informações encontradas e criar um eixo explicativo, o que só foi possível nos
últimos meses do prazo regular da universidade, com a ajuda de toda a
comunidade acadêmica que estuda o tema futebol e dos colecionadores com os
quais entrei em contato.
L.A.:
Há alguma
"grande descoberta" feita em suas pesquisas?
J.P:
Não sei se entendi o que quer dizer com “grande descoberta”. Mas a
percepção de que o negócio futebol já existia no início do século XX, de que a
memória do futebol é “disputada” por simpatizantes, jogadores e dirigentes
esportivos desde a década de 1910, que a idéia de um futebol elitizado neste
período é equivocada, são descobertas que considero relevantes para a
compreensão do fenômeno futebol, no momento em que o país se prepara para a
realização da Copa do Mundo.
L.A.:
O tema
escolhido para sua tese ainda causa "estranhamento" no meio
acadêmico?
J.P:
Não. Inclusive, preciso indicar que sua realização só foi possível
porque existe na atualidade uma postura de aceitação e respeito aos que
pesquisam o tema. A própria USP possui um laboratório temático que realiza
pesquisas sobre futebol e é coordenado pelo professor Dr. Flávio de Campos. A leitura da dissertação permite perceber o
quanto sua realização se deve aos pesquisadores, que nas décadas de 1980 e
1990, enfrentaram as resistências que existiam sobre o tema na universidade.
Não apenas por “abrirem” o campo, mas pelas descobertas e propostas de cada um
deles.
Sobre o autor:
João Paulo Streapco
É membro do Memofut (Grupo Memória e
Literatura do Futebol) e do GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre o
futebol). O GIEF é formado por pesquisadores das áreas de
Antropologia, Educação Física, Geografia e História, para que pesquisadores,
estudantes e interessados debatam e descubram novas perspectivas analíticas
para estudar o Futebol.
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