Em 2010, o SESC, de Santos organizou a exposição e vídeo-instalação "É 10!". O evento prestou homenagem aos 70 anos de Pelé e outros craques do mundo que se destacaram vestindo a camisa 10. Para quem não viu, compartilho aqui os textos que produzi para o evento.
********
10 que não eram 10
Na história do futebol
brasileiro, nem sempre o craque do time teve o privilégio e a honra de ser o 10
de sua equipe. Pura coincidência. Tostão, por exemplo, craque do Cruzeiro era
um legítimo 10, mas jogou, coincidentemente, durante dez anos na equipe
mineira, entre 1963 e 1972, ao lado de outro craque da camisa, Dirceu Lopes.
Nem por isso, Tostão poderia deixar de ser lembrado como um autêntico 10.
Tostão, nome de uma moeda de valor baixo que circulou no Brasil na primeira
metade do século passado XX, tinha o talento escondido em um corpo franzino,
dono de estilo elegante e extraordinária visão de jogo. Quando deixou o
Cruzeiro, em 1972, para jogar pelo Vasco da Gama, na maior transação do futebol
brasileiro da época, só poderia receber a camisa representativa dos grandes
craques. Tostão virou o 10 do Vasco, mas por pouco tempo, pois uma contusão
grave no olho o afastou definitivamente dos gramados.
As virtudes de um grande 10 não
estão escondidas apenas na camisa que usam. Há de ter talento acima de tudo e,
com uma boa dose de imaginação, basta vê-lo em campo com a camisa que
diferenciava os homens comuns dos mortais. Waldir Pereira, ou simplesmente,
Didi, craque que começou no Fluminense, depois campeão absoluto no Botafogo e
seleção brasileira é o exemplo perfeito desta “magia”. Não foi à toa que
recebeu do cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues o apelido de “Príncipe
Etíope”. Era preciso, frio e estava sempre ao lado de um rei. Foi assim ao lado
de Pelé, na conquista do bicampeonato mundial, em 1958/1962, e de outras
“lendas” do futebol, como Di Stéfano e Puskas, no poderoso Real Madrid, no
final da década de 1950.
A elegância com que “desfilava”
pelos gramados tornou-se sua marca registrada, mas além de gênio, também foi um
criador, afinal, é dele a jogada batizada de “folha seca”, técnica que
consistia numa forma de se bater na bola, numa cobrança de falta, com o lado
externo do pé, hoje chamada de “trivela”. Era assim que a bola ganhava um
caminho inesperado até chegar ao gol, semelhante a uma folha caindo.
Ser 10 no futebol é também deixar
a todos de boca aberta na execução de uma jogada. Garrincha eternizou a camisa
7, mas se os “deuses” dos estádios o tivessem escolhido para reinar com a 10,
não seria uma heresia. Na infância, a genética parecia comprometer o sucesso
nos gramados, pois Garrincha tinha as pernas tortas. O que parecia “defeito”
virou a principal arma para aterrorizar seus marcadores. Não havia antídoto
contra os dribles de Mané Garrincha; todos sabiam que ele sairia para a
direita, mas ninguém conseguia detê-lo. As pernas tortas não o impediram de
conquistar o mundo, nas Copas de 1958 e 1962, com a seleção brasileira, e
durante décadas no Botafogo, mas uma artrose nos dois joelhos transformou-se em
um verdadeiro martírio para o craque. A dor e a vida pessoal atribulada, além
da dependência do álcool, justificaram a trajetória triste deste “anjo das
pernas tortas”.
O título de sua biografia, Estrela solitária, escrita por Ruy
Castro, resume definitivamente a história de Garrincha, dentro e fora dos
gramados. A maneira intensa de viver, aliada a sua simplicidade, levou-o a três
casamentos e 14 filhos. Aclamado como a “alegria do povo”, também foi
reverenciado e eternizado após sua morte precoce, em 1983, pelo poeta Carlos
Drummond: “Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar
suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha
disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho”.
Garrincha só não soube driblar as
barreiras que a vida coloca nos caminhos de todo ser humano. Ser genial, quando
se é uma figura pública, tem o seu custo. Tudo que se constrói dentro das
quatro linhas de um gramado parece desaparecer com atitudes ou declarações
feitas fora de campo. Gérson, o “canhotinha de ouro”, viveu esse “inferno”
quando decidiu aceitar o convite de um fabricante de cigarros, depois que já
havia encerrado a carreira como jogador, para ser garoto propaganda do produto.
Com o slogan criado na campanha, “gosto de levar vantagem em tudo”, surgiu a
“lei de Gérson”, representante da malandragem brasileira, do “jeitinho” e
corrupção. Gérson nunca se arrependeu de fazer o comercial, mas concordou que a
recusa teria evitado muitos dissabores e eternas justificativas que sempre foi
obrigado a dar. Em campo, ao contrário da “lei” maliciosa, era genial e
genioso, craque “cerebral”, falante ao extremo, tanto que ganhou apelido de
“papagaio”. Dono de lançamentos precisos, especialmente de longas distâncias,
tinha um diferencial de outros meio-campistas talentosos: era combativo, sem se
esquecer de atacar. Com ele em campo o Botafogo viveu dias de glórias, como o
bicampeonato carioca e a Taça Brasil, em 1968. No ano seguinte, deixou a camisa
8 do alvinegro carioca para ser o camisa 10 do tricolor paulista, clube que não
sabia o que era o sabor de um título havia 13 anos. Com liderança e
genialidade, Gérson ajudou o São Paulo a conquistar o bicampeonato paulista, em
1970/71.
Tornar-se líder em clubes de
massa não é missão para qualquer um, ainda mais para aqueles que jogaram em
períodos “negros” da política brasileira. Depois dos “anos de chumbo”, da
ditadura militar, nas décadas de 1960 e 1970, no início dos anos 80 o Brasil
conheceu, além de um craque de bola, um líder que daria início a novas relações
profissionais no futebol. Ele não precisou ser o 10 de sua equipe para exercer
influência sobre os demais. Sócrates não pensou duas vezes em se juntar ao
movimento das “Diretas Já”, em 1984, até porque, no Corinthians, foi
responsável e líder de outro movimento histórico que ficou conhecido como
“Democracia corintiana”. Além do calcanhar “mágico”, Sócrates acabou com a
lenda de que jogador de futebol teria de ser eterno escravo das duras leis
impostas por dirigentes e cartolas do esporte. Lutou, e ainda luta, pela
criação de mecanismos que permitam aos jogadores de futebol, uma melhor
formação cultural para não terem o mesmo fim da grande maioria dos atletas
profissionais: o desemprego e a miséria absoluta.
Dentro da representação mística
do 10, no mundo do futebol, havia ainda aqueles que, ao contrário de Sócrates,
Gérson ou Didi, não faziam a menor questão de se mostrarem líderes ou
respeitadores das regras e convenções impostas na rotina de todo craque.
Romário, o baixinho com futebol de gente grande, é um legítimo 10, pelo menos
para aqueles que adoram histórias de “craque problema”, “ídolo rebelde”, ou
qualquer outra alcunha que represente a transgressão.
Romário tornou-se irreverente
pela mistura da genialidade que tinha para fazer gols com o total desprezo que
sempre demonstrou ter com as regras. Enquanto jogou, fazia questão de dizer a
quem quer que fosse que “acordar cedo” para treinar, não era com ele. Polemizou
com grandes figuras do futebol brasileiro, jogadores ou técnicos, como Pelé,
Zico, Zagallo e Felipão; ou no exterior, com Johann Crujyff, todo-poderoso no
Barcelona. Não teve o menor constrangimento de defender dirigentes
inescrupulosos, como Eurico Miranda durante anos no Vasco, clube que o revelou
para o futebol, como também de vestir a camisa dos principais rivais no Rio de
Janeiro, como o Flamengo e o Fluminense. Cobrado por um simples torcedor, não
teve nenhuma dúvida em trocar “sopapos” com o camarada em um dia de treino. Mas
havia também no baixinho camisa 11, uma capacidade incrível de fazer o que o
amante do futebol mais aprecia em um jogo: gol, muitos gols. Romário forçou a
barra na contabilidade para encerrar a carreira com a marca de mil gols. Nem
precisava, basta recordar seus momentos mágicos na Copa que ganhou praticamente
sozinho, em 1994.
Nenhum comentário:
Postar um comentário