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Katia Rubio |
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As aventuras de uma pesquisadora olímpica
Por muito tempo
a representação social que se tem de ciência me fez crer que ser pesquisadora
fosse ficar dentro de laboratórios, manipulando tubos de ensaio, usando
microscópios, descobrindo coisas que apenas seres iluminados são capazes de
reconhecer e encontrar.
Foram
necessários muitos anos, e bons professores, para eu conhecer a pesquisa social
e saber que se pode construir conhecimento de maneira bastante distinta dessa.
Nessa forma de se fazer pesquisa não existe, de imediato, um distanciamento
entre aquilo que procuro e eu mesma. Isso parece meio esquisito, principalmente
depois de passarmos tanto tempo ouvindo a máxima de que ciência se produz se se
mantiver distância pessoal daquilo que se pesquisa. Mas, com o passar do tempo
é possível observar que é justamente a proximidade com nosso objeto de pesquisa
que nos proporciona a humanização da ciência. Fantástico saber que mais do que
uma teoria é exatamente essa proximidade que nos move quando estamos “no
campo”. Por que não dizer que humanização envolve paixão, isso mesmo, emoção,
afetividade. E a medida que o tempo passa também descubro que os melhores
textos que leio são aqueles em que os autores são realmente enamorados do que
fazem.
Não bastasse
isso na pesquisa social somos ainda obrigados a exercitar uma certa porção
detetivesca, além de termos que desenvolver a certeza de que certo é a
incerteza de não sabermos ao certo o que encontraremos quando estivermos diante
daquilo que queremos observar. Ok, posso explicar melhor. Trabalhar, por
exemplo, com histórias de vida significa estar sempre pronta a ouvir algo novo,
inesperado e que, mesmo não previsto nas minhas perguntas iniciais, ali pode
estar a deixa para uma ótima nova pesquisa. Como cantou a Marina Lima, “dentro
de cada um, tem mais mistérios do que pensa o outro…”
Embora já
trabalhe com histórias de vida há mais de 13 anos essa forma de fazer pesquisa
continua a me encantar pela arte do encontro. O não saber e o inusitado são
meus companheiros tão constantes quanto alguns membros do grupo de estudo. Isso
quer dizer que a cada entrevista o encontro com algo inesperado pode acontecer,
seja na forma da abordagem do sujeito, ou mesmo nas memórias que são relatadas.
Assim como são aqueles que se aproximam desejando participar das reuniões de
trabalho seja, ou não, para depois fazer mestrado ou doutorado. Já perdi a
conta de quantos vieram e se foram, mas, assim como os sujeitos da pesquisa,
cada um com seu estilo, à sua maneira, deixou uma contribuição, sendo difícil
precisar de quem exatamente foi uma idéia. Por isso não canso de repetir…
escrevam! As palavras que só são ditas são como o ar que respiramos: tão
necessárias, mas se perdem na próxima inspiração.
Algumas
entrevistas são verdadeiros prêmios, seja pela dificuldade de consegui-las,
pelo teor de seu conteúdo, pela trajetória singular do narrador, pelo estilo da
narração ou ainda pela possibilidade de me fazer pensar em algo que eu ainda
não tinha visto em qualquer outra entrevista. Depois do texto pronto, apenas
quem acompanhou a pesquisa tem idéia do que é o making off de um projeto
que envolve mais de um milhar de pessoas.
Meu atual
projeto de pesquisa compreende todos os atletas brasileiros que foram a Jogos
Olímpicos desde a primeira participação brasileira, ou seja, 1920. De fato ele
acumula experiência e dados de outros projetos e remota 10 anos de trabalho
contínuo. Não há limites para se chegar a algum atleta que em qualquer
modalidade tenha realizado essa façanha. E assim, graças à Fapesp e ao CNPq, eu
cruzei o Brasil de ponta a ponta. Já são mais de 500 entrevistas com diferentes
gerações olímpicas que somam centenas de horas de memórias emocionadas
registradas em vídeo, inclusive de alguns atletas que já morreram.
E quanto mais
histórias eu ouço, mais eu entendo as mazelas do esporte olímpico brasileiro em
suas diferentes modalidades. Seja do ponto de vista da formação da identidade,
da transição de carreira, das políticas públicas, da dor, do caráter das
instituições, dos dirigentes, das forças que gravitam em torno do cenário e do
circo que se monta a cada período de treinos, concentração ou competição.
Entendo mais do que nunca o que é ser atleta olímpico no Brasil, no presente e
o que foi no passado porque os atletas me contam sobre suas conquistas. Além
disso contam também as mazelas do que é querer ser o melhor, mas sem ter as
mesmas condições que os melhores têm e, de repente, encontrar as forças ou
bases para poder se surpreender e aos outros também.
Escrevo esse
texto em Valkenswaard, na Holanda, após duas ótimas entrevistas: Bernardo Alves
e Rodrigo Pessoa. Eles estão por aqui concentrados para os Jogos Panamericanos
de Guadalajara e eu aproveitei um congresso na Alemanha para vir até eles.
Persigo Rodrigo desde 2004. Uso o termo perseguir porque ele é um dos exemplos
de que não bastam todos os recursos materiais para se fazer uma boa pesquisa
social. É preciso persistência, paciência e, às vezes, um pouco de sorte. Não
dimensionei na previsão de custos as viagens internacionais da minha pesquisa
porque não sabia ao certo quantos seriam os atletas a morar fora do país, mas
ao longo dos últimos 20 meses descobri que esse número é superior ao que
imaginava. A sistemática adotada então foi cercá-los (sempre que possível)
quando de sua visita ao Brasil ou, como dessa vez, fazer uma busca apurada
aproveitando uma viagem marcada por outro motivo. Pois bem. Alguns chamam isso
de maximizar custos. Eu diria que é mais um desafio ao pesquisador: aprender a
fazer previsões orçamentárias para o projeto não acabar antes de ficar pronto
por falta de verba. E como projeto não é como obra para a Copa… se o dinheiro
acabar, não há o que fazer. E não adianta deixar para o final porque licitação,
em nosso caso, só funciona para compras acima de 8 mil reais. O crime não
compensa, definitivamente. Ou seja, se não viesse para esse congresso teria
perdido mais uma oportunidade de conseguir a entrevista com o Rodrigo, e também
com o Bernardo, que atualmente mora na Bélgica. São as sortes do caminho.
Chegar a
Valkenswaard foi uma aventura possível graças ao convite dos organizadores da
Conferência Play the Game, que ocorreu em Colônia, na Alemanha, e a
hospitalidade infinita de Maggy e Roland Renson, que me hospedaram em Leuven,
na Bélgica, e junto comigo esperaram pacientemente os dias passarem com a
resposta de onde seria a concentração da equipe de hipismo para que eu pudesse
fazer as entrevistas. O outono é minha estação do ano preferida no Brasil, mas
estar esses dias em Leuven observando o avermelhar das árvores, o amarelar da
grama, os cogumelos brotarem no quintal e a temperatura cair foi mais do que
recompensador. Foi um dos momentos de prazer que a pesquisa reserva.
Lembrei muito
nesses dias da minha querida Ana Mesquita, que por duas vezes fez o Canal da
Mancha e na segunda bateu o recorde da travessia, recorde esse mantido até
hoje. No seu livro A Travessura do Canal da Mancha ela conta da ansiedade que
era passar cada dia esperando pela melhor maré, pelas condições do tempo mais
adequadas, e que sem essa paciência todo o projeto podia ser perdido. Não bastava
apenas sua tenacidade hercúlea para cumprir uma tarefa digna de uma heroína…
era preciso uma paciência odisséica para não se perder no canto de uma sereia
ou num debate ingênuo com um ciclope. Vento, maré, condições pessoais e desejo
institucional precisavam estar perfeitamente casados para que tanto esforço não
se perdesse.
Claro que me
lembrei muito também dos alpinistas que vão ao Aconcagua ou ao Everest em busca
do cume. Quantos meses são gastos para que a expedição possa ocorrer, quantos
detalhes são necessários do ponto de vista logístico e operacional para que a
montanha possa ser conquistada. E como dizem os alpinistas: a montanha tem a
sua própria vontade e cabe ao alpinista respeitá-la e aproveitar quando seus
humores permitem a escalada.
Dessa vez tive
sorte: vim, esperei, entrevistei. Mas, há também muitas viagens que são
realizadas que nos deixam um gosto amargo de tempo perdido, seja pela ausência
do entrevistado, pelo imprevisto que faz um atraso se tornar ausência ou a
ainda a falta de entendimento do que a pesquisa se propõe.
Volto para casa com a sensação de alma cheia. A
conferência foi uma oportunidade rara de encontrar pessoas interessantes, de
pensar em projetos futuros e organizar coisas no Brasil. E as entrevistas… bem,
essas poderão ser lidas na terceira edição dos Heróis Olímpicos Brasileiros e
na Enciclopédia Olímpica Brasileira prevista para 2015. Aguardem.
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Katia Rubio é professora
associada da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo,
orientadora nos programas de Pós-graduação da EEFE-USP e FE-USP. Escreveu e organizou
15 livros acadêmicos nos últimos 10 anos na área de Psicologia do Esporte e
Estudos Olímpicos abordando os temas psicologia do esporte, estudos olímpicos,
psicologia social do esporte, psicologia do esporte aplicada e esporte e
cultura. É também bacharel em Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social
Casper Líbero (1983) e Psicologia na PUC-SP (1995).
Coordena atualmente o Centro de Estudos
Socioculturais do Movimento Humano da EEFE-USP e foi presidente da Associação
Brasileira de Psicologia do Esporte entre os anos de 2005 a 2009.
Lançamento/Serviço:
"OS ESTUDOS OLÍMPICOS E O OLIMPISMO NOS CENÁRIOS BRASILEIRO
E INTERNACIONAL" de Katia Rubio e Roberto Mesquita.
Dia 03/11, às 20:00hs
Local:
Sala João Neves da Fontoura (Plenarinho) da Assembleia
Legislativa –
Praça Marechal Deodoro, número 101 - Bairro Centro - Porto
Alegre/RS.
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