Além das postagens feitas aqui sobre a paixão de Gabriel
Gárcia Márquez pelo futebol, abaixo um texto em que o escritor colombiano
revela seu gosto pelo boxe. Gabriel Gárcia Márquez, com a maestria de sempre,
transforma a queda de um mito do boxe, Joe Louis, em uma crônica de primeira.
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Joe Louis |
Para todos que tinham Joe Louis como um dos mais atraentes mitos da infância, o melancólico fim de comédia que está vivendo o Demolidor de Detroit é quase a derrota de um amável aspecto de nós mesmos.
Ao lado do pastor que por duas vezes anunciou, falsamente, a
chegada do lobo e que nos ensinava a não mentir; ao lado dos algaravães que nos
arrancariam os olhos se olhássemos além do que nos era permitido, e que nos
obrigavam a ser discretos, Joe Louis constituía o formidável mito que nos
ensinava, dia após dia, como aspirar ao prêmio da superioridade.
Ele teve, além do mais, a vantagem de sobreviver aos outros.
Muito depois de o pastor do lobo ter sido reduzido a uma simples e divertida
lição de moral e os algaravães a pacíficos animais de olhos arregalados e bico
longo, que cantavam com ritmo e dividiam o dia em espaços iguais, Joe Louis
continuava sendo o que sempre fora desde seu primeiro dia. Logo deixaria de ser
um mito para transformar-se num objeto de toda a nossa confiança, um animal
infalível e metódico, que respondia sempre da mesma maneira, como um relógio
faz com a sua corda, sem que uma única vez fosse perturbado seu extraordinário
mecanismo de orangotango bem azeitado.
Nós todos percorremos às avessas o caminho de Joe Louis.
Primeiro, o conhecemos como uma entidade mitológica surgida da terra, gotejando
a substância mineral que dele fazia um ser superior às outras criaturas,
movendo-se num mundo onde o real era tudo o que estava em volta de sua força
desproporcional, e o irreal ele próprio, movendo-se como uma besta colossal em
torno do adversário, que dela só conhecia a cada coice de mula que o
aniquilava.
Depois, quando começamos a ler as biografias sintéticas que
se publicavam antes de cada encontro, Joe Louis se tornando cada vez mais
humano, mas, pela mesma razão, mais inverossímil e fantástico. Antes se
aceitava que seu privilegiado organismo de semideus mulato fizesse tombar as
muralhas que se interpunham diante dele, exatamente como um Josué armado de
instrumentos mais convincentes do que a demolidora trombeta que o guerreiro
bíblico soprou diante de Jericó. Pouco depois tornou-se ainda mais
inacreditável, e isso quando se soube que todo o seu poderio era o resultado de
um regime de vida especial e que seus recursos residiam nos mesmos órgãos com
os quais o sapateiro ao lado fazia sapatos e o pedreiro da esquina colocava seu
tijolo.
Chegou um instante em que parecia impossível a Joe Louis
perder uma só luta. Então houve um intenso trabalho para a imaginação, que nos
mostrou um Joe Louis patriarcal, sentado entre os cacos dos seus adversários
dando lições de prudência e de força, como um monarca negro cuja soberania não
emanava nem de Deus nem do povo, mas da ginástica praticada com uma furiosa
determinação.
Mas aconteceu o contrário. Quando o colosso beijou a lona,
todo o mundo lhe caiu em cima, num doloroso afã de destruição; e agora todos os
principiantes aspiram rematar a sua glória, hoje colocada em leilão público.
Lá embaixo, nos subúrbios da fama onde agora Joe Louis se
encontra, todos nós que o tínhamos na conta de um dos mais valiosos mitos de
nossa infância temos agora, forçosamente, de sentir algo dessa dor sem medida
que deve estar sentido o colosso que, depois de haver aplicado os melhores
socos do mundo para poder instalar bares de negros no Harlem e para dividir,
aos punhados, dinheiro entre seus companheiros de raça, vem assestando os
piores murros e, o que é mais triste, recebendo-os para poder pagar seus
impostos.
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Joe Louis, em 1948. |
Perfil Joe Louis
Deixou os combates por dois anos. Quando voltou a calçar as luvas, Louis fez dez combates na tentativa de reconquistar o título mundial. O lutador conseguiu oito vitórias, mas perdeu para Ezzard Charles, em 1950, e anunciou que não lutaria mais. No ano seguinte, porém, enfrentou Rocky Marciano e foi nocauteado de novo. "Sou seu fã", disse Marciano, após o combate.O motivo pelo qual Joe lutou com Rocky Marciano foi o fato de estar tendo problemas financeiros em consequência de um golpe bancário aplicado pelo sócio de seu empresário.
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Joe Louis, em 1973 |
Nos anos seguintes, Joe Louis virou árbitro de lutas e consumiu muita
cocaína, tendo sido hospitalizado para tratamento. Ele também esteve internado para tratamento de distúrbios nervosos. Começou a ter alucinações de que a Máfia estaria tentando matá-lo com gás venenoso. Certa vez, ao entrar num quarto de hotel, ele tapou todas as entradas de ar com maionese. Chegava a montar uma barraca em cima da cama para se sentir mais protegido.
Morreu em 12 de abril de 1981, aos 66 anos, de ataque cardíaco.
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