Algumas publicações despretensiosas podem com o passar dos
anos tornarem-se documentos históricos. Revirando meus arquivos encontrei uma
revistinha surrada pelo tempo, editada pela Secretaria de Cultura do Estado de
São Paulo, no distante ano de 1982. Pode não ter sido pioneira, mas com certeza,
foi uma das primeiras publicações em que o futebol era discutido por
intelectuais, gente do mais alto gabarito, coisa impensável nas décadas
anteriores àquele período da publicação (e ainda hoje, em alguns casos).
Assinam artigos magníficos na revista gente que o editor,
Nelson Merlin, definiu assim em seu editorial: “...temos aqui o miserável
futebol de Plínio Marcos, os subterrâneos inconscientes meticulosamente
analisados pelo Dr. Carlos Byington, o desacerto generalizado dos que estão com
outros dramas para resolver e não vão conseguir nunca virar o jogo, como em
Josué Guimarães. E nesses ataques e contra-ataques, José Celso Martinez Correa,
irriquieto, propõe o Teatro como um esporte das multidões, Luís Fernando
Veríssimo, arguto, vira o corpo e avança na carnificina das origens, João
Batista de Andrade, sem esperanças, fala de um namoro impossível com as câmeras,
Djalma Limongi Batista, de “Asa Branca”, se permite sonhar na fantasia do
Cinema. Rubem Braga faz o seu retrato do time. Antonio Callado acerta uma
diferença com Zeffirelli e os italianos. Carlos Moraes, ex-padre, ex-preso
político, bate bola no seminário e na cadeia. João de Scantimburgo constata que
a massa, se passa fome, quer circo, e o professor José Sebastião Witter estimula
a necessidade de se estudar a fundo fenômeno de tal dimensão”.
Postaremos aqui, em série, alguns destes artigos. Este é o segundo, assinado pelo músico e professor, Gilberto Mendes.
Santos Football Music
Que relação vejo entre o futebol e a música?
Obrigatoriamente, nenhuma. Mas tudo na vida se relaciona ou pode ser
relacionado, se quisermos. No campo da música popular, por exemplo, lembro-me
de algumas músicas que falaram do futebol, como o “Beto bom de bola”, do Sérgio
Ricardo, outra do Jorge Bem...E deve haver mais. Sim, uma do Gilberto Gil.
Enfim, esta não é minha área, paro por aqui.
No campo da música erudita (com perdão da palavra erudita,
que é um batismo feito pelo Mário de Andrade) não conheço realmente nenhuma
obra, a não ser o meu “Santos Football Music”. Mas deve haver, talvez em outros
países. O esporte tem interessado alguns compositores. Se não me engano,
Honegger se inspirou no “rugby”. No ano passado (1981), tivemos “The First
International Sports and Cultural Festival”, em Vancouver, Canadá. Mais de
cinqüenta mil pessoas de todas as partes do mundo se reuniram ali para a
prática de esportes e eventos culturais, liderados pelo grande compositor
inglês Cornelius Cardew, que foi um dos mais destacados artistas europeus no
campo da música comprometida politicamente. Cardew preparava o segundo
Festival, quando foi atropelado e morto por uma motocicleta, agora em dezembro,
perto de sua casa em Londres. Com apenas 42 anos. A música engajada de hoje,
como podem ver, tem procurado se relacionar com o esporte. O jogo envolve a
problemática do aleatório, cara à música de nosso tempo.
A minha peça em torno do futebol poderia ter explorado essas
possibilidades aleatórias. Mas tal não aconteceu. A ideia nasceu de uma
conversa minha com o jornalista, meu amigo, Ênio Squeff. Ele me perguntou por
que eu não compunha uma obra musical com base no jogo de futebol, já que eu
morava em Santos, sede do mais famoso clube brasileiro. De, naquela época, lá
por 1967/68, o Santos Football Club era o time mais destacado, no cenário do
futebol mundial. Achei interessante a ideia, mas difícil a realização. Não
queria fazer a coisa óbvia de dois grupos instrumentais disputando, dentro de
um plano aleatório, uma competição musical. As “Estratégias”, do Xenakis, já
tinham essa “jogada”.
Um dia, num domingo, vindo de carro de São Paulo para
Santos, me chamou a atenção a velocidade do “speaker” que descrevia um jogo de
futebol pelo rádio: a velocidade, a ondulação microtonal de sua voz, os
crescendo e diminuendo, o grande glissando do “goal”. Era como que um canto
gregoriano prestíssimo. Nasceu nesse instante a música procurada. Seria um
contraponto a três vozes de “speakers” irradiando um jogo. Basicamente. As
outras idéias vieram aos poucos.
Imaginei uma massa orquestral sob esse contraponto de
irradiações, com um caráter profundamente atonal, blocos de timbres em
permanentes flutuações, sobreposições, transformações. E a participação do
público ouvinte como se fosse o estádio todo torcendo. Mas tudo escrito,
indicado por cartazes e feito um ensaio prévio (que é a primeira parte da
música) de todas as intervenções que os ouvintes deveriam realizar. A peça não
tem nada de aleatória, embora pareça. E no meio do público uma charanga toca
nos momentos indicados pela partitura. Aquela batucada que a torcida faz, um
som que procurei também integrar na peça.
Bem no final há uma interrupção da música, como a
interrupção de um jogo, apitada pelo regente, que se transforma em juiz.
Desenvolve a seguir um pequeno jogo de futebol entre os músicos e acontece um
“penalty”. Um teatro musical. Com isso tudo, conjuguei alguns dos mais
importantes dados da música de hoje, como são a participação do ouvinte na obra
de arte, o teatro musical, o som concreto (das irradiações do jogo, gravadas em
fita magnética) e a massa orquestral tratada atonalmente, num fluir contínuo,
não melódico.
Resumidamente é isso aí, o meu “Santos Football Music”. O
título ficou em inglês, num paralelo com o nome do clube, que também está em
inglês, Santos Football Club. Também porque é mais eufônico do que “Santos
Futebol Música”. A peça acabou atendendo a um comissionamento que recebi da
Comissão Estadual de Música, sob a presidência do José Luiz Paes Nunes. Mas
logo depois ele pediu demissão, e o comissionamento ficou por isso mesmo.
Já começando mal assim, pensei que a música seria engavetada
para sempre, mesmo porque sua execução requeria uma produção muito complicada,
não usual normalmente. Para minha surpresa, uns quatro anos depois o maestro
Eleazar de Carvalho interessou-se em levá-la para uma primeira audição mundial
no Outono de Varsóvia, que é um dos mais importantes festivais europeus de
música contemporânea. E assim fez. O que deu início a uma verdadeira “carreira”
de sucessos para a música. Eleazar depois apresentou-a muitas vezes em São
Paulo e Santos, na Bienal de Música do Rio de Janeiro; e outros regentes
(Neshling, Bastianelli) fizeram a obra ainda no Rio, Bahia e na “Westdeutsch Rundfunk”,
de Colônia. E a editora “Sistrum”, de Brasília, lançou uma bela edição da peça,
em formato grande. Tudo isso é meio inacreditável, tratando-se de peça
orquestral que requer tal aparato para sua execução. Agrada-me o fato de ela
ser realmente de massa, atinge em cheio o público. E ao mesmo tempo, totalmente
experimental. Meu amigo, o compositor Almeida Prado, disse um negócio
interessante, que ela é genuinamente brasileira sem ser folclórica.
O curioso nisso tudo é que eu não tenho o menor interesse em
futebol. Interessou-me a transa musical que pude tecer em cima do assunto.
Dediquei a obra a meus filhos, que gostam de futebol, e naturalmente ao maestro
Eleazar de Carvalho.
Não gosto de futebol porque é profissional. Não dá para
torcer para aqueles caras que ganham uma fábula e exigem mais ainda para ganhar
um campeonato mundial. É tudo uma empresa comercial, tudo coisa de mercado,
competição econômica, não esportiva.
Não tem sentido torcer hoje para um clube que amanhã poderá
ser outro, feito da compra dos próprios jogadores adversários de ontem. Eu pelo
menos não entendo essa mecânica psicológica do torcedor, que um dia malha um
jogador, no outro dia torce por ele em seu clube.
A prática artística e esportiva deve ser uma atividade
amadora. Considero-me, por exemplo, um ex-bancário que fez música nas horas
vagas. Não tenho vivido da música. E nem pretendo.
Gilberto Mendes, foi professor na Universidade de São Paulo
e um dos pioneiros da música experimental aleatória e do teatro musical no
Brasil.
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