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Clarice Lispector |
Que bom seria se nossos grandes autores da atualidade escrevessem mais sobre a maior paixão popular do brasileiro: o futebol.
Quem poderia imaginar que a enigmática e introspectiva Clarice Lispector, uma das maiores autoras brasileiras do século 20 pudesse se interessar pelo tema futebol?
Pesquisando aqui e acolá, encontramos no blog do mestre em literatura, especialista e pesquisador da obra de Clarice Lispector, professor Miguel Leocádio Araújo (recomendamos a leitura de seu blog (http://paginasefolhas.blogspot.com) um material espetacular, três resenhas maravilhosas, aqui reproduzidas em um único artigo, com a respectiva autorização do mestre autor do texto.
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Prof. Miguel Leocádio Araújo |
O que você lerá a seguir, gostando ou não da obra de Clarice Lispector, é uma obra prima para quem um dia pretende escrever sobre o tema futebol.
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CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL:
A HORA
DA ESTRELA SOLITÁRIA
(artigo
postado em 29/05/2009)
"O futebol tem uma
beleza própria de movimentos que não precisa de comparações". Esta frase
poderia tranqüilamente vir de um abalizado admirador do futebol ou de qualquer
torcedor minimamente atento à dimensão de arte que se chegou a atribuir a um
bom jogo com bons jogadores, não viesse ela de Clarice Lispector. Aliás, a
escritora declarava repetidamente ser uma pessoa comum, como qualquer outra,
uma brasileira simples, mesmo tendo nascido na distante Ucrânia. E, como a
brasileira que afirmava ser e de fato o foi, ela não ficou incólume às seduções
deste esporte capaz de mobilizar uma nação, talvez muito mais do que outras
manifestações de massas, por mais que isso desagrade a muitos. Sobretudo em
tempo de Campeonato Brasileiro ou de Copa do Mundo. Imagine Clarice, diante da
TV, assistindo aos jogos do Brasil na última Copa, na Alemanha, ou das Copas
que ainda estão por vir...
Para
alguns, isso é algo difícil de imaginar. É que a representação da autora em
circulação no imaginário de uma parcela considerável de leitores, admiradores e
devoradores da prosa clariceana é freqüentemente associada a outras questões: a
existência e suas contingências, a condição humana sempre às voltas com seus
mistérios, a condição feminina e seus desvãos, a indefectível angústia, a
morte, a solidão, os limites da linguagem, entre outros temas considerados profundos
e complexos. Tal associação cristalizou uma imagem bastante específica da
escritora, como se ela não tivesse tido a possibilidade de uma existência
comum, cotidiana. Daí talvez ser difícil vincular Clarice ao futebol, pelo
menos para alguns, o que, muito longe de considerarmos algo ruim, nos serve de
mote para pensar na possibilidade do inesperado ou na distante experiência do
outro.
João
Cabral de Melo Neto, por exemplo, escreveu um poema sobre a amiga ("Contam
de Clarice Lispector"):
intercambiava
com amigos
dez mil
anedotas de morte,
e do que tem
de sério e circo.
Nisso, chegam
outros amigos,
vindos do
último futebol,
comentando o
jogo, recontando-o,
refazendo-o,
de gol a gol.
abre a boca
um silêncio enorme
e ouve-se a
voz de Clarice:
Vamos voltar
a falar na morte?
O
poema cabralino reafirma aquela imagem de Clarice interessada em discutir e rir
da “Indesejada das gentes”, como disse um dia Manuel Bandeira; e o futebol
entraria só de soslaio, como uma narrativa que finda para dar lugar à busca dos
sentidos da morte.
Porém,
há elementos pouco explorados da biografia de Clarice que a aproximam, como a
muitos brasileiros, do tema do futebol, como algo que se encrava no cotidiano.
Mas
é vasculhando os escritos dela que se podem encontrar indícios da possibilidade
à qual me referi antes. E explico melhor aos poucos.
Em entrevistas e crônicas, Clarice Lispector chegou a se declarar absoluta torcedora do Botafogo.
Ao
entrevistar Marques Rebelo, ela, para desviar-se de um assunto sobre o qual
aparentemente não gostava de falar – a sua alardeada densidade como ficcionista
–, pergunta qual era o time de Rebelo, que rapidamente se afirma como torcedor
do América (“A única paixão de minha vida”, segundo a sentença do
entrevistado). Clarice revela que é Botafogo e é logo chamada de “cartola” pelo
escritor, no que ela simplesmente cala, como se consentisse... Era o final da
década de 1960; e a entrevista era para a sessão "Diálogos possíveis com
Clarice Lispector", da revista Manchete. Ao que parece, dialogar
sobre futebol também era possível para ela, que era uma escritora considerada
difícil...
Em
Entrevistas (Rocco, 2007), publicação que reúne a maior parte das
conversas aparecidas em De corpo inteiro (1975), mais 19 inéditas em
livro, Clarice encontra-se com dois ícones do futebol brasileiro: Zagallo e
João Saldanha.
Ao
dialogar com o primeiro, a entrevistadora, revelando uma franca admiração,
inicia por afirmar: “Sendo você bicampeão mundial e bicampeão carioca,
Zagallo, eu, se dependesse de mim escolheria você para técnico da seleção
brasileira.” Zagallo mostra-lhe o braço com os pêlos arrepiados de emoção.
O gelo estava logo quebrado, para começo de conversa. E ela nem imaginava o que
Zagallo se tornaria para a Seleção Brasileira décadas depois.
A
entrevista, realizada num banco do jardim da sede do Botafogo, foi animada a
risos e cumplicidade, já que a escritora estava no quartel-general do seu time
do coração (selvagem?), às vezes sendo instada a sair da condição de
entrevistadora à de entrevistada, mesmo que escolhesse o que responderia ou
calaria. Outras vezes, ela interfere nas respostas de Zagallo (com afirmações,
entre parênteses, sobre si mesma), certamente estimulada pelo papo franco e
descontraído.
Algumas
das perguntas ao atleta eram completamente genéricas e difíceis de responder,
tais como: “Zagallo, qual é a coisa mais importante para você?”, “Qual
é a coisa mais importante para você como pessoa?” ou “O que é o amor,
Zagallo?” Já outras dirigiam-se mais especificamente ao esporte: “Zagallo,
qual seria a melhor tática, o melhor sistema para o selecionado brasileiro na
próxima copa?” Entre brincadeiras e assuntos mais sérios, como o futebol, o
diálogo entre Clarice e Zagallo dá a medida de como a escritora vibrava com o
esporte.
Com
João Saldanha a conversa chegou a detalhes técnicos, já que o entrevistado da
vez era treinador da seleção brasileira que iria para a Copa de 1970, quando
seríamos tricampeões. Clarice cita vários jogadores, como Garrincha e Pelé. Uma
de suas perguntas está bastante próxima dos paradoxos encontráveis em muitas de
suas obras, sendo bastante curiosa: “Por que a bola não parece redonda para
todos? Pois quando chega junto de certos jogadores ela é extremamente quadrada.”
Esta foi uma maneira clariceana de evocar a pouca habilidade de certos
jogadores à época. E a resposta de Saldanha foi extremamente objetiva, o que
satisfaz a entrevistadora: “Futebol é uma arte e em arte prevalece o
talento. Uns têm mais, outros menos. Eis a razão.” Um outro aspecto era o
registro do conhecido lado engraçado de João Saldanha. Ao ser perguntado pela
ficcionista se ele acreditava que se podia ganhar “no grito”, ele responde com
desenvoltura: “Se isto fosse possível, a Itália seria imbatível. Ninguém
grita mais alto que italiano. Afinal de contas, eles cantam ópera.”
Como
se não bastassem as entrevistas e toda a mitologia que envolve o nome de
Clarice Lispector (com ou sem futebol), numa crônica de 1968, ela afirmou ser
leitora do famoso e admirado cronista esportivo Armando Nogueira pelo fato de
ele "escrever bonito", mesmo que não entendesse todo o jargão descritivo
de uma partida. Esta crônica, por sinal, chama-se “Armando Nogueira, futebol
e eu, coitada” e foi escrita em resposta a um comentário de Nogueira em que
dizia que trocaria uma vitória de seu time por uma crônica de Clarice sobre o
futebol... Pois bem, Clarice, em tom sério, beirando a dramaticidade, escreve
que não perdoaria, nem por brincadeira, que se trocasse uma vitória do Botafogo
por um romance inteiro dela, sobre futebol... Virtudes de torcedor devotado? Ou
melhor, de uma torcedora devotada?
Apesar
de sempre dizer que não entendia de futebol, ela entregava-se com uma
"ignorância apaixonada" ao seu time e ainda tinha que contemporizar
as divergências entre um filho botafoguense e outro flamenguista, tarefa nada
fácil para quem já optara pelo primeiro time. O mais curioso é que Clarice
relatou que, na verdade, gostava de assistir a jogos pela TV e que só uma vez
na vida foi ao estádio para ver, de "corpo presente", uma partida de
seu time. Segundo sua própria afirmação, isso a tornaria uma "brasileira
errada".
E
para não dizer que Clarice Lispector não colocou em ficção algo relacionado ao
futebol, basta lembrar que no conto “À procura de uma dignidade”, de Onde
estivestes de noite (1974), a personagem, Sra. Jorge B. Xavier, inicia sua via
crucis perdida nas galerias do Maracanã, em busca de uma conferência
qualquer que não sabia ao certo se ali se realizaria. Desorientada, a
protagonista chega à área "verdadeira" do estádio: o campo. Mas, na
verdade, encontra um "espaço oco de luz escancarada e mudez aberta, o
estádio nu, desventrado, sem bola nem futebol. Sobretudo sem multidão."
A nudez daquele espaço é a própria imagem do que há de mais triste no futebol,
para os torcedores mais filosóficos: um estádio vazio. E Clarice
inesperadamente captou esta imagem, mesmo só tendo ido uma única vez na vida a
uma partida de futebol in loco. Coisas de artista...
Fonte:
Sugestão de leitura para conhecer Clarice Lispector:
(resenha da biografia escrita por Benjamin Moser)
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